Adeus, não. Até breve, Francisco!
O papa se despede do Brasil deixando um rastro de amor e amizade
Por Marco Lacerda*
Poucas vezes na vida vi acontecimento tão marcante. E olha que já tenho alguma estrada: vi o homem descer na Lua, o primeiro transplante de coração, Kennedy assassinado, o discurso célebre de Martin Luther King, os Beatles, Woodstock, as lentes de contato, a revolução de Steve Jobs na informática, o ataque às torres gêmeas de Nova York, a eleição do primeiro negro à presidência dos EUA, entre muitos outros de uma lista infindável de acontecimentos.
Nenhum deles, porém, se compara à visita de Jorge Bergoglio, o papa Francisco, ao Brasil, encerrada ontem. Francisco me impressionou desde o momento em que desceu do avião com seus sapatos surrados de andarilho (nada parecidos com os macassins Prada usados por seus antecessores), determinado a levar seu recado fraterno às periferias abandonadas e humilhadas do planeta.
Enquanto esteve no Brasil Francisco circulou por ruas e avenidas, em carros utilitários, que nenhum governante se atreveria a pisar sem a companhia confortável de contingentes policiais autorizados a disparar sem motivo contra uma juventude que sai às ruas para reivindicar uma vida mais justa e digna para o povo brasileiro. Mesmo sabendo das consequências funestas do seu gesto, Francisco se jogou nos braços das multidões, abraçando e sendo abraçado. Pastores de verdade não temem misturar-se às ovelha nem chafurdar os pés na lama.
A mensagem de Francisco ficou clara em sua primeira viagem internacional concluída neste domingo. Esse homem que escolheu como papa o nome de um pobre coitado der Assis quer uma Igreja pobre e para os pobres. No maior país católico do mundo não foram necessários teólogos para decifrar o recado. Sua magnitude estava clara na mansidão da voz de Francisco e na simplicidade de suas palavras.
O Brasil é um dos países emergentes já inseridos na partilha do poder mundial neste século 21. Nossa força está na classe média integrada por multidões que conquistam, à custa de muito suor e sofrimento, educação, casa própria, saúde e bem estar. Nosso fracasso são os que se perdem no caminho sem condições de acompanhar a marcha. Precisamente em nome deles veio Francisco. De que serve emergir da pobreza se a sociedade deixa para trás os desafortunados e doentes, os drogados e presos, maltratados e prostituídos, desempregados e sem posses …
É justamente a eles, em seus cem primeiros dias de pontificado, que Francisco tem dedicado seus sermões e o repetiu agora no Brasil, parte do seu continente onde os abandonados tornaram-se parte da paisagem.
Em sua visita o papa nada falou sobre moral sexual e reprodutiva numa região onde o conservadorismo católico busca sua identidade e traça uma fronteira com a sociedade, mesmo que sua posse da cátedra de Pedro coincida com os maiores avanços legais do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos EUA e na França. O que não significa que o papa seja contra ou a favor de tais avanços. Pelo que vimos e ouvimos durante sua passagem pelo Brasil, não é difícil concluir que sua opção, por ora, é dedicar-se de corpo e alma aos párias do planeta.
Durante a semana que Francisco passou no Brasil dormi embalado por algumas de suas palavras e reflexões:
– Bote fé que a vida terá um novo sabor.
– Como diz o ditado, sempre se pode colocar mais água no feijão.
– Tudo aquilo que se compartilha, se multiplica.
– Como é bom ser acolhido com amor, generosidade e alegria.
– Não trouxe ouro nem prata, mas o melhor que me foi dado: Jesus Cristo.
A última frase do papa, pronunciada no palácio Guanabara no dia da sua chegada, teria desanimado o governador e o prefeito do Rio de participar da cerimônia, conforme foi ironicamente divulgado nas redes sociais. Os mesmos dirigentes, acostumados à farra do uso de jatinhos do governo para fins pessoais, coroaram seu descaso com o pontífice ao oferecer-lhe um helicóptero decrépito para levá-lo até o aeroporto Tom Jobim, de onde retornou a Roma. Protegido por sua modéstia, Francisco não reparou. De dentro do cacareco, apenas desenhou um coração com os dedos indicadores, como último gesto de despedida do Brasil.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal.
Fonte: Dom Total
Leia a íntegra do discurso de despedida do Papa:
“Senhor Vice-Presidente da República,
Distintas Autoridade Nacionais, Estaduais e Locais,
Senhor Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro,
Senhores Cardeais e Irmãos no Episcopado,
Queridos Amigos!
Dentro de alguns instantes, deixarei sua Pátria para regressar a Roma. Parto com a alma cheia de recordações felizes; essas – estou certo – tornar-se-ão oração. Neste momento, já começo a sentir saudades. Saudades do Brasil, este povo tão grande e de grande coração; este povo tão amoroso. Saudades do sorriso aberto e sincero que vi em tantas pessoas, saudades do entusiasmo dos voluntários. Saudades da esperança no olhar dos jovens no Hospital São Francisco. Saudades da fé e da alegria em meio à adversidade dos moradores de Varginha. Tenho a certeza de que Cristo vive e está realmente presente no agir de tantos e tantos jovens e demais pessoas que encontrei nesta inesquecível semana. Obrigado pelo acolhimento e o calor da amizade que me foram demonstrados. Também disso começo a sentir saudades.
De modo particular agradeço à Senhora Presidenta, por ter-se feito intérprete dos sentimentos de todo o povo do Brasil para com o Sucessor de Pedro. Cordialmente agradeço a meus Irmãos Bispos e seus inúmeros colaboradores por terem tornado estes dias uma celebração estupenda da nossa fé fecunda e jubilosa em Jesus Cristo. Agradeço a todos os que tomaram parte nas celebrações da Eucaristia e nos restantes eventos, àqueles que os organizaram, a quantos trabalharam para difundi-los através da mídia. Agradeço, enfim, a todas as pessoas que, de um modo ou outro, souberam acudir às necessidades de acolhida e gestão de uma multidão imensa de jovens, sem esquecer de tantas pessoas que, no silêncio e na simplicidade, rezaram para que esta Jornada Mundial da Juventude fosse uma verdadeira experiência de crescimento na fé. Que Deus recompense a todos, como só Ele sabe fazer!
Neste clima de gratidão e saudades, penso nos jovens, protagonistas desse grande encontro: Deus lhes abençoe por tão belo testemunho de participação viva, profunda e alegre nestes dias! Muitos de vocês vieram como discípulos nesta peregrinação; não tenho dúvida de que todos agora partem como missionários. A partir do testemunho de alegria e de serviço de vocês, façam florescer a civilização do amor. Mostrem com a vida que vale a pena gastar-se por grandes ideais, valorizar a dignidade de cada ser humano, e apostar em Cristo e no seu Evangelho. Foi Ele que viemos buscar nestes dias, porque Ele nos buscou primeiro, Ele nos faz arder o coração para anunciar a Boa Nova nas grandes metrópoles e nos pequenos povoados, no campo e em todos os locais deste nosso vasto mundo. Continuarei a nutrir uma esperança imensa nos jovens do Brasil e do mundo inteiro: através deles, Cristo está preparando uma nova primavera em todo o mundo. Eu vi os primeiros resultados desta sementeira; outros rejubilarão com a rica colheita!
O meu pensamento final, minha última expressão das saudades, dirige-se a Nossa Senhora Aparecida. Naquele amado Santuário, ajoelhei-me em prece pela humanidade inteira e, de modo especial, por todos os brasileiros. Pedi a Maria que robusteça em vocês a fé cristã, que é parte da nobre alma do Brasil, como também de muitos outros países, tesouro de sua cultura, alento e força para construírem uma nova humanidade na concórdia e na solidariedade. O Papa vai embora e lhes diz “até breve”, um “até breve” com saudades, e lhes pede, por favor, que não se esqueçam de rezar por ele. Este Papa precisa da oração de todos vocês. Um abraço para todos.
Que Deus lhes abençoe!