Campanha da Fraternidade 2012
Primeira Parte
Fraternidade e a Saúde Pública
1- Saúde e Doença: dois lados da mesma realidade
7. A vida, a saúde e a doença são realidades profundas, envoltas em mistérios. Diante delas, as ciências não se encontram em condições de oferecer uma palavra definitiva, mesmo com todo o aparato tecnológico hoje disponível. Assim, as enfermidades, o sofrimento e a morte apresentam-se como realidades duras de serem enfrentadas e contrariam os anseios de vida e bem-estar do ser humano.
8. Nas línguas antigas é comum a utilização de um mesmo termo para expressar os significados de saúde e de salvação. Na língua grega, soter é aquele que cura e ao mesmo tempo é salvador. Em latim, ocorre o mesmo com salus. Verifica-se o mesmo em outras línguas. Certamente, a convergência destes significados para um único termo é reflexo da dura experiência existencial diante destes fenômenos e a percepção de que o doente necessita ser curado ou salvo da moléstia pela ação de outrem.
9.Outro elemento importante, na antiguidade, para a compreensão da convergência dos significados de saúde e de salvação, é a antropologia de fundo. Sobretudo entre os orientais, o ser humano era concebido de forma unitária, com suas distintas dimensões profundamente integradas. Eles concebiam doenças de ordem corporal e de ordem espiritual, muitas vezes ligadas à ação de espíritos maus e a castigos. Neste contexto, consi-deravam que não é só o corpo que adoece, nem só a medicina que cura, o que conferia grande importância aos ritos religiosos para a salvação do adoentado.
10.A estreita ligação entre saúde e salvação (cura) e a convergência desses siginificados em um mesmo termo apontam, portanto, para uma concepção mais abrangente do que seja a doença. As tendências de excluir a dimensão espiritual na consideração do que seja saúde e doença resultam, pois, em compreensões su¬perficiais destas realidades. Como exemplo, temos a definição de saúde que a OMS (Organização Mundial da Saúde) apresentou, em 1946, que não incluía a dimensão espiritual: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças”.
11.Somente em 2003, a OMS incorporou a espiritualidade na reflexão e na definição da saúde, não sem polêmicas e posicionamentos contrários. Esta nova concepção vem, no entanto, se firmando como uma direção a ser seguida, pois amplia os elementos para a compreensão deste fenômeno, o que é mais condizente com a natureza humana.
2 – Saúde e salvação para a Igreja
12.A experiência da doença mostra que o ser humano é uma profunda unidade pneumossomática. Não é possível separar corpo e alma. Ao paralisar o corpo, a doença impede o espírito de voar. Mas se, de um lado, a experiência é de profunda unidade, de outro, é de profunda ruptura. Com a doença passamos a perceber o corpo como um ‘outro’, independente, rebelde e opressor.
Ninguém escolhe ficar doente. A doença se impõe. Além de não respeitar nossa liberdade, ela também tolhe nosso direito de ir e vir. A doença é, por isso, um forte convite à reconciliação e à harmonização com nosso próprio ser.
13.A doença é também um apelo à fraternidade e à igualdade, pois não discrimina ninguém. Atinge a todos: ricos, pobres, crianças, jovens, idosos. Com a doença, escancara-se diante de todos nos¬sa profunda igualdade. Diante de tal realidade, a atitude mais lógica é a da fraternidade e da solidariedade.
14.Os temas da saúde e da doença exigem, portanto, uma abordagem ampla, como a proposta pelo Guia para a Pastoral da Saúde, elaborado pelo CELAM (Conferência Episcopal Latino-Americana). O GPS diz que a saúde é afirmação da vida, em suas múltiplas incidências, e um direito fundamental que os Estados devem garantir.O mesmo documento assim define saúde: “saúde é um processo harmonioso de bem-estar físico, psíquico, social e espiritual, e não apenas a ausência de doença, processo que capacita o ser humano a cumprir a missão que Deus lhe destinou, de acordo com a etapa e a condição de vida em que se encontre”.
15.A vida saudável requer harmonia entre corpo e espírito, entre pessoa e ambiente, entre personalidade e responsabilidade.6 Nesse sentido, o Guia Pastoral, entendendo que a saúde é uma condição essencial para o desenvolvimento pessoal e comunitário,apresenta algumas exigências para sua melhoria:
a) articular o tema saúde com a alimentação; a educação; o a. trabalho; a remuneração; a promoção da mulher, da criança, da ecologia, do meio ambiente etc.;
b) a preocupação com as ações de promoção da saúde e defesa da vida, que respondem a necessidades imediatas das pessoas, das coletividades e das relações interpessoais. No entanto, que estas ações contribuam para a construção de políticas públicas e de projetos de desenvolvimento na-cional, local e paroquial, calcada em valores como: a igualdade, a solidariedade, a justiça, a democracia, a qualidade de vida e a participação cidadã.
16. Trata-se de uma concepção dinâmica e socioeconômica da saúde que, ao tomar o tema da saúde, não restringe a reflexão a causas físicas, mentais e espirituais, mas avança para as sociais. Com esta abordagem, a Igreja objetiva apresentar elementos para dialogar com a sociedade, a fim de melhorar a situação de saúde da população.
3 – Elementos da Doutrina Social da Igreja pertinentes à saúde pública
17. A solidariedade, de acordo com a Doutrina Social da Igreja, é um princípio com dois aspectos complementares: um social e outro ligado à virtude moral. Esses aspectos da solidariedade devem nortear as pessoas em suas relações, além de levá-las a compromissos em prol do bem comum e da transformação das estruturas injustas que ferem a dignidade da pessoa.9 A solidariedade precisa se efetivar em ações concretas, convergindo para a caridade operativa. “Jesus de Nazaré faz resplandecer, aos olhos de todos os homens, o nexo entre solidariedade e caridade, iluminando todo o seu significado”.
18. Constata-se a proximidade entre justiça e solidariedade, de maneira especial, no âmbito da saúde pública, quando a pessoa enferma e debilitada necessita de justo e qualificado cuidado médico, envolvido pelo solidário calor humano de quem serve. Esses princípios inseridos na ação são enriquecidos pela prática da caridade, pois ela marca a justiça com o amor na condu¬ção das relações entre as pessoas. Por isso, Bento XVI afirma que, mesmo em uma sociedade em que as relações e serviços se pautem pela justiça, faz-se necessária a caridade, pois: “Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor”.
19. É oportuno salientar também a importância dos princípios de subsidiariedade e de participação. Ambos constituem princípios da Doutrina Social da Igreja que nos ajudam a compreender e a iluminar a realidade da saúde pública e a buscar caminhos para melhorá-la.
20. A subsidiariedade é um princípio que aponta para um modo de relação e cooperação construtivo entre as instituições maiores, de mais ampla abrangência, e entre as menores de uma sociedade. Essa cooperação deve se realizar em duas vias. Primeiro, que as macro instituições subsidiem as pequenas no que é necessário, sem interferir ou restringir o espaço vital das células menores e essenciais da sociedade, como família, associações e grupos organizados, para que elas cumpram a própria missão. Segundo, uma vez que estas instituições menores realizem suas funções,isto se reverte em benefício para as instituições macro. As instituições macro, como o Estado, devem, porém, se abster do que possa “restringir o espaço vital das células menores e essenciais da sociedade”. Deste modo, a aplicação do princípio de subsi¬diariedade estabelece condições irrenunciáveis para a vivência da cidadania de modo democrático, “é impossível promover a dig¬nidade da pessoa sem que se conceda o necessário espaço para sua própria constituição e livre atuação.São espaços onde se expressa a “subjetividade criadora do cidadão”.
21. O princípio da participação exprime-se numa série de atividades mediante as quais o cidadão, como cidadão ou associado com outros, contribui para a vida cultural, econômica, política e social da sociedade civil a que pertence. A participação é um dever a ser cons¬cientemente exercitado por todos de modo responsável e em vista do bem comum”.
22. Estes princípios oferecem bases para uma reflexão oportuna sobre as responsabilidades no campo da saúde. Se é dever do Estado promover a saúde por meio de ações preventivas e oferecer um sistema de tratamento eficaz e digno a toda população, especialmente aos mais desprovidos de recursos, é, também, responsabilidade de cada família e cidadão assumir um estilo de viver que, por meio de hábitos saudáveis e de exames preventivos, contribua para evitar as doenças. Se cabe ao Estado providenciar toda a assistência médica aos enfermos, cabe à fa¬mília o acompanhamento dedicado e carinhoso aos seus que adoecem. A família, o Estado e a Igreja têm funções distintas, mas complementares no processo de tratamento de seus mem¬bros adoecidos.
23. Pelos princípios de subsidiariedade e de participação, infere-se 23. que os cidadãos e as entidades e organizações civis e religiosas precisam colaborar com o Estado na implementação das polí¬ticas de saúde, por meio dos espaços de controle social. Desta forma, cabe-lhes exigir do Estado o cumprimento de suas obri¬gações constitucionais, acompanhar e fiscalizar a qualidade dos serviços oferecidos, verificando a situação das estruturas de atendimento, a responsabilidade dos profissionais no exercício de suas funções.
24. A reflexão sobre estes princípios orientadores são importantes 24. para que a ação evangelizadora, da Igreja e dos cristãos, possa se revestir de contundência e profetismo na área da saúde. Além da caridade na atenção aos enfermos, é necessário empenho por mudanças nas estruturas que geram enfermidades e mortes. Tais estruturas tornam-se visíveis nas situações de exclusão, na falta de condições adequadas e dignas de vida e no descaso, em certas circunstâncias, no atendimento oferecido aos usuários do sistema de saúde. Tudo isto é exposto não só pelos MCS, mas também pelos rostos sofridos e pelas mortes causadas pelo indigno atendimento.
25. “A Igreja no Brasil sabe que ‘nossos povos não querem andar pelas sombras da morte. Têm sede de vida e felicidade em Cristo’. Por isso, proclama com vigor que ‘as condições de vida de muitos abandonados, excluídos e ignorados em sua miséria e dor, contradizem o projeto do Pai e desafiam os discípulos missionários a maior compromisso a favor da cultura da vida”. A fidelidade ao projeto de salvação de nos¬so Senhor, que indicou o caminho do cuidado aos doentes como um dos mais genuínos sinais da realização do Reino, reclama da evangelização ações pela justiça em favor dos injustiçados, vivê-laprofeticamente é ser fiel ao Evangelho.
4. Contribuições recentes da Igreja no Brasil para a Saúde Pública
26. Em mais uma manifestação da preocupação da Igreja com a re alidade social da população, em 1981, a Campanha da Frater¬nidade (CF) “Saúde e Fraternidade” apresentou o lema “Saúde para Todos”. A Campanha contribuiu para a reflexão nacional do conceito ampliado de saúde. Na época, o Papa João Paulo II escreveu, em sua mensagem para a Campanha, que a “boa saúde não é apenas ausência de doenças: é vida plenamente vivida, em todas as suas dimensões, pessoais e sociais. Como o contrário, a falta de saúde, não é só a presença da dor ou do mal físico. Há tantos nossos irmãos enfermos, por causas inevitáveis ou evitáveis, a sofrer, paralisa¬dos, ‘à beira do caminho’, à espera da misericórdia do próximo, sem a qual jamais poderão superar o estado de ‘semimortos’”.
27. A discussão sobre a saúde foi retomada na CF de 1984, com o tema ‘Fraternidade e Vida’ e o lema ‘Para que todos tenham vida’, partindo da citação bíblica: “pois eu estava com fome, e me destes de comer,… doente, e cuidastes de mim” (Mt 25,35-36). Esta Campanha buscou ser um sinal de esperança para as comunidades cristãs e para todo o povo brasileiro, a fim de que, em um panorama de sombras e de atentados à vida, sentissem a luz de Cristo, que vence o egoísmo, o pecado e a morte, reforçando os princípios norteadores da valorização da vida, do início até o seu fim.
28. Tais iniciativas constituem em marcos importantes da ação da . Igreja, tanto no campo da saúde como no da saúde pública, em nosso país. Por ser amplo o leque destas atividades, com satisfa¬ção identificam-se ações pastorais, próprias do múnus eclesial, que resultam em contribuição da Igreja para o cumprimento das ‘Metas do Milênio’, com as quais o governo brasileiro compro¬meteu-se perante a comunidade internacional, mobilizando di-retamente vários de seus setores.
29. No início da década de 1990, a ONU (Organização das Nações 29. Unidas), estabeleceu 8 metas de melhorias sociais a serem implementadas pelos países com deficits nestes indicadores. As “Metas do Milênio” tornaram-se referenciais para as ações sociais do governo e de entidades civis e religiosas, em prol da melhoria das condições de vida das populações. A saúde não só está contemplada entre as metas, como também ocupa o centro de suas atenções, com objetivos estipulados para serem alcançados até o ano de 2015. Desde então, são invidados esforços para a consecução dos objetivos, resultando em ações concretas de governos, Igrejas e sociedade. A seguir, são elencadas as “Metas do Milênio”. Na sequência, são abordadas as que estão grafadas em negrito.