A Voz do Pastor
Conversa com Jesus numa tarde de Sexta-feira Santa
A tarde cai por detrás da serra, a luz se esvai no clarão do mar.
Você, Jesus carregou – você mesmo – a cruz às costas (Jo 19,17). É como se visse Abraão e Isaac subindo o monte Moriáh. “Meu pai, aqui estão o fogo e a lenha. Mas onde estará o cordeiro para o holocausto?” (Gn 22,7). Deus providenciará! Subiu o pai, repetindo, para si mesmo. A cada passo, uma nova repetição. A cada nova repetição, uma força a mais para se apegar ao impossível.
Agora, Jesus, é a sua vez de repetir: O Pai providenciará. Mas, e se o Pai se cala: silencia toda palavra, todo gesto, toda intenção? Naquele oceano de dor, o que mais lhe doía era a ausência de quem sempre esteve lá e não poderia deixar estar, justo ali?“Por que me abandonaste?” (Mt 27,46). Onde estaria o cordeiro para o holocausto? Onde Pai? Você, meu Filho, você é o cordeiro.
Faltem-me todas as presenças. Esvaziem-se todas as vozes. Quanto mais funda se tornar a areia sob meus pés, quanto mais cortante for o vento, quanto mais cerrado o nevoeiro, ainda mais nítida se torne sua voz, com uma palavra única, uma palavra só, e somente esta: Sou eu, não temas! São seiscentos metros desde o horror do pretório ao horror do Calvário. Pouco, para quem caminha em vida. Muito, para quem se arrasta à beira da morte. Mas eu peço: não pare, Senhor.
Nem desça da cruz, por favor. Não se permita não alcançar o fim. Que será de nós se esse rio não desaguar no mar? Deixe que se arrastem as três intermináveis horas. Espera o fel para os seus lábios. Oferece o lado para o rasgão bendito. Fique até o fim. Mostre ao mundo a distinção essencial entre acabar e consumar-se. Não tivemos água para sua sede. Não tivemos ombro para o seu cansaço. Não tivemos remédio para sua dor. Algum dia, tivemos algo mais do que vinagre? Que lugar ocupamos na distância que lhe trouxe até esse topo de colina? Quem fomos ao longo desse caminho amargo: a Mãe, Cireneu, Verônica, as mulheres, Pedro, os soldados?
Agora, Senhor, descanse seu sono, breve como a aragem da manhã. Você foi além do esperado, do previsível, do prometido. Já o sol se põe, lá longe. As espigas dançam ao vento, douradas de luz, do mais lindo sol poente que já houve. Os homens ainda não sabem que estão libertos de antigas cadeias. Mas eu sei. Nós dois sabemos. Outros saberão. E, se um dia, sopros misteriosos apagarem todas as estrelas e a luz se apagar, e mãos invisíveis soltarem todas as tempestades… Se um dia, a desolação interior nos levar a exclamar: Por que me abandonaste?… É que chegou a hora da plenitude, a nona hora: a nossa hora. Estaremos prontos e seremos dignos? Até o fim?
“Das profundezas minha alma clama a ti. Deus meu, ouve o meu grito!” (Sl 129).
Você, Senhor, desceu até águas profundas e se afogou cercado de sombras. Mas nessa hora, ouviu-se a voz do Pai, que parecia ausente, se manifestar. Não era possível que a morte ocupasse o centro da sua vida e o vazio, o centro de tudo que você foi. Você arrastou consigo a miséria do mundo para o nada em que se viu convertido. Enfim, o Pai o chamou, e o ergueu e você está nas em Suas mãos. Tudo se consumou! Pelas rotas escuras da noite avança a aurora. Das entranhas da morte brota e cresce, ereta como o cipreste, a árvore da ressurreição. Ainda que outros digam que nada mudou, a mão do Pai se manifesta, e Ele diz à morte: Jamais terás a palavra final!
“O Senhor é o pastor que me conduz, nada me falta. Passarei os mais negros abismos, sem temer mal nenhum” (Sl 23).
Mais dia menos dia, terei também eu a chance única de dizer ao Pai, que a grande homenagem a ser a Ele prestada, é a de aceitar, todo dia e a cada instante, não poder ver um palmo diante dos olhos e, mesmo assim, confiar e prosseguir. Que rumo tomará minha vida? Não sei nem me importo. O Pai sabe: só isso importa.
Fui morto na cruz com Cristo. Vivo, mas já não sou mais eu que vivo: é Cristo quem vive em mim (Gl 2,19).
Acabou? Não! Apenas começou.
Agora, Senhor, é a hora das lâmpadas se encherem de óleo, das figueiras estéreis florescerem, da colheita, da festa de casamento e da dança. As cadeias irão se abrir, as espadas vão se enferrujar. Chegou, enfim, o dia de ver o Pai vestindo os lírios do campo e alimentando os pardais, pelas praças.
Que ao seu Nome, Jesus, todo joelho se dobre, no céu, na terra e sob a terra, e toda língua confesse, que só você é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai. Amém!
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói