Sobre inocência e intolerância
O mundo acompanha, entre preocupado e estarrecido, o incidente gerado pelos EUA com a realização do longa-metragem Muhammad’s trial (que pode ser traduzido como ‘Julgamento de Maomé’), considerado anti-islâmico, intitulado paralelamente Muhammad, prophet of the muslims (em português, ‘Maomé, profeta dos muçulmanos’). O filme em questão faz duras críticas ao Islã, inclusive ao profeta Maomé, autoridade religiosa máxima da tradição de fé.
Na verdade, o filme inteiro não foi exibido, mas sim um vídeo mais curto, que circulou pela internet. O vídeo, que é o trailer de um filme mais longo chamado Innocence of Muslims (“Inocência de Muçulmanos”, em tradução livre), parece retratar o Islã como uma religião de violência e ódio, e Maomé, como um homem tolo e com sede de poder. Acredita-se que o filme completo tenha cerca de uma hora, ainda que o vídeo mais visto seja um trailer de 14 minutos, amplamente divulgado em inglês e árabe, com características amadoras no que diz respeito a atores, cenário e produção.
Os resultados não se fizeram esperar. Rebeliões e protestos em vários pontos do mundo, mortes (inclusive a do embaixador estadunidense na Líbia) e outras manifestações de violência. Ataques suicidas em vários países muçulmanos deixaram um rastro de sangue e terror assustador.
Parece incrível que em um mundo pluralista, onde tantos envidam esforços pela paz e a concórdia entre os povos e as religiões alguém cometa essa falta de respeito e essa imprudência. Basta conhecer levemente o Islã, para se ter conhecimento do tamanho do problema que tal filme criaria.
Para o Islã, qualquer representação de Maomé vai contra os ensinamentos islâmicos imagine-se então uma representação satírica e crítica. A descrição pouco elogiosa da mulher de Maomé e de seus seguidores também é considerada uma blasfêmia. Outras referências aos casos de Maomé com mulheres, a sua ganância e sua tendência à violência também são ofensivas em qualquer contexto. Assim como a insinuação de que o profeta seria abusador de jovens, homossexual etc.
Além disso, o princípio fundador do Islã é que o Alcorão é a palavra direta de Deus, revelada a Maomé para ser difundida pela humanidade. Sendo assim, o fato de o vídeo colocar em questão o estatuto de revelação divina do Alcorão, afirmando ser o mesmo inspirado em trechos do Antigo e Novo Testamentos, também é uma afronta aos muçulmanos.
Uma reflexão sobre o estatuto plurirreligioso de nossa sociedade pode nos ajudar igualmente a entender o que acontece. Em termos fenomenológicos, a categoria “pluralismo religioso” se refere simplesmente ao fato de que a história das religiões mostra uma pluralidade de tradições e uma pluralidade de variações dentro de cada tradição. Filosoficamente, no entanto, o termo se refere a uma particular teoria da relação entre essas tradições, com suas diferentes e competitivas características. Esta é a teoria segundo a qual as grandes religiões do mundo constituem concepções e percepções variadas, e respostas àquela que é a última e misteriosa divina realidade.
Um incidente como o que hoje vivemos nos diz algo importante sobre o respeito e a convivência na pluralidade. A ascensão da sacralidade plurirreligiosa não necessariamente implica num crepúsculo da adesão a uma religião tradicional com todas as consequências daí advindas. Implica, sim, num constante e agudo discernimento que fará com que a vivência da própria fé e a reflexão sobre ela devam ser, mais do que nunca, submetidas a um discernimento e uma reflexão sobre o coração de sua identidade. A fecundidade atingida com o movimento de interface entre as religiões corre o risco de diluir-se enquanto a face da sacralidade permanecer difusa e sem nenhum contorno, falhando no sonho e na tentativa efetiva de criar uma síntese robusta e consistente.
No diálogo e no desejo de interlocução e encontro entre as religiões, experimenta-se o dilaceramento entre o amor e a verdade. No fundo mais profundo do desejo inaudito de ir ao encontro do outro está igualmente o desejo de com ele aprender coisas que só o Espírito de Deus no outro pode ensinar. Mas para que diálogo haja, haverá que fazê-lo sem perder a identidade da própria experiência. Ainda que – felizmente – para isto seja necessário abrir-se sempre mais ao outro para com ele aprender como esperar este futuro que somos todos – em rica reciprocidade, – chamados a construir, mas que por outra parte nos é e será graciosamente dado.
Espera-se que cristãos e muçulmanos caminhem e avancem mais neste aprendizado a partir da recente experiência do infeliz vídeo que tem ocupado as páginas da mídia nos últimos dias.
Autor: Maria Clara Bingemer