A mulher de Jesus
A “descoberta” de um provável papiro copta de quatro por oito centímetros levanta, mais uma vez, o debate sobre detalhes da vida de Jesus Cristo e, em especial, sobre a possibilidade de ele ter sido casado.
O assunto já foi ampla e economicamente muito bem explorado pelo escritor Dan Brown em seu livro “O código Da Vinci”.
Agora, uma historiadora especializada nos primeiros anos do cristianismo recebeu de um colecionador, que preferiu permanecer anônimo, um papiro, que seria fragmento de um evangelho apócrifo, com uma frase nunca antes vista em nenhum outro documento antigo: “Jesus disse a eles, ‘minha esposa (…)’.”
O papiro teria sido escrito no século IV, mas provavelmente é uma cópia de um texto anterior feito por volta de 150 d.C.
O assunto, é claro, foi destaque na mídia. Afinal, nesse nosso mundo enlouquecido, levantar teorias da conspiração sobre Jesus é menos perigoso e explosivo do que falar de Alah e seu profeta Maomé.
No embalo da discussão, o colunista da Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman, diz em seu artigo de 21/10 que “Não tenho nada contra essa discussão, mas há uma outra, anterior, que quase nunca é lembrada: Jesus, de fato, existiu?
É certo que, como ideia, ele é real. Em seu nome edificaram não uma, mas centenas de igrejas. Por isso mesmo é interessante saber se à figura mítica corresponde um personagem histórico de carne e osso.
O que salta à vista aqui é a notável ausência de documentação contemporânea aos supostos fatos. Há quase que apenas os Evangelhos, que tinham muito mais o objetivo de propagar a nova religião do que de registrar eventos. Para piorar, o mais antigo dos Evangelhos canônicos, o de Marcos, foi escrito ao menos 40 anos após a alegada crucificação, o que significa que não pode ser considerado uma fonte primária. Os evangelistas escreveram o que ouviram dizer, não o que testemunharam.
Há ainda umas poucas e rápidas menções a Jesus em autores não cristãos, como Flávio Josefo, Plínio, Tácito e Suetônio. Mas eles estão ainda mais longe dos fatos do que os evangelistas, e historiadores acreditam que essas referências podem ter sido introduzidas por copistas.
É claro que ausência de evidências não é evidência de ausência. Um Jesus histórico poderia perfeitamente ter existido mesmo que sua odisseia não tivesse sido capturada pela, em geral eficaz, burocracia romana”.
O colunista é cuidadoso em seu texto, mas, talvez por falta de espaço, não entra em detalhes importantes dessa história. Afinal, porque são tão parcas as “fontes primárias” que poderiam atestar a existência do Jesus histórico?
Primeiro: por mais “eficaz” que fosse a burocracia romana, o “Jornal Nacional” da época dificilmente iria noticiar direto de Jerusalém a crucificação de mais um “profeta judeu”, entre tantos, naquele fim de mundo do Império, que era a Judeia. Jesus, para Pilatos, Herodes, os grandes sacerdotes, ou seja, “os formadores de opinião” da época, era mais um profeta louco, um milagreiro farsante ou, o mais provável, um subversivo a ser eliminado do meio daquele povo rebelde e ingovernável.
Segundo: num tempo em que a comunicação era essencialmente oral e tinha a precariedade que se pode imaginar, é pouco provável que notícias sobre ‘um tal Jesus’ saíssem do âmbito da Palestina de então.
As primeiras citações sobre Jesus fora do contexto cristão são de Flávio Josefo, um historiador que viveu de 37 d.C. até por volta do ano 100. Em alguns de seus textos que chegaram até nós, ele refere-se a Jesus, como em seu livro Antiguidades Judaicas (livro 18, parágrafos 63 e 64, escrito em 93 em grego koiné). Ele diz:
“Havia neste tempo um homem chamado Jesus (…) Ele fez seguidores tanto entre os judeus como entre os gentios. E quando Pilatos, seguindo a sugestão dos principais entre nós, condenou-o à cruz, os que o amaram no princípio não o esqueceram (…) E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, não está extinta até hoje.”
Vejam que estou citando apenas os trechos que referem-se ao Jesus histórico. A partir do Século II, as citações vão-se multiplicando a medida que o Cristianismo vai deixando de ser considerado uma seita dissidente do Judaismo e assume sua identidade como Religião Histórica. A partir do século IV, com a conversão do Imperador Constatino, ele vai, aos poucos, assumindo o lugar de Religião oficial do Estado Romano. Multiplicam-se, obviamente, os registros sobre Jesus de Nazaré e sua divulgação.
Estudiosos e historiadores honestos, para além dos arroubos e roubos da verdade que encontramos na grande mídia, saberão dar o exato significado e valor de documentos como este papiro, agora apresentado.
Mas nada disso importa quando saimos do terreno da História e penetramos no território do sagrado, mergulhando no “mistério da nossa fé…”.
Todas essas informações que, pessoalmente, como cristão curioso e aluno estudioso, acho fantásticas, tornam-se secundárias. São inúteis para quem não acredita e desnecessárias para quem crê. Até porque, a fé não precisa de provas, nem mesmo de evidências. Sua matéria prima é a gratuidade. No fundo, nu fundo eu creio como criança; porque sim…
E, diante da notícia sobre uma possível “esposa de Jesus”, fato que, se comprovado, só aumentaria minha fé e admiração pelo Mestre, o Jesus em que creio me convida, muito mais, a refletir sobre a maneira como Ele se relacionou com as mulheres do seu tempo.
É bom lembrar que mulheres, naquele tempo, eram pouco mais que res (coisa), objeto de troca, propriedade do pai, do marido, cujo valor social era próximo de zero. Legalmente, nem seu testemunho era válido num tribunal.
Num abiente assim, são constantes e, às vezes, perturbadores, os relatos de mulheres que seguiam Jesus, tendo algumas delas se tornado muito próximas dele, como as irmãs Marta e Maria.
Em Lucas 7,36-47, há uma descrição fantástica de um encontro entre Jesus e uma mulher que “era conhecida na cidade por ser pecadora”. Jesus está à mesa, na casa de Simão, um fariseu, que o convidara para jantar. Assim diz o texto:
“Convidado por um dos fariseus para jantar, Jesus foi a casa dele e reclinou-se à mesa. Ao saber que Jesus estava comendo na casa do fariseu, certa mulher daquela cidade, uma ‘pecadora’, trouxe uma frasco de alabastro com perfume, e se colocou atrás de Jesus, a seus pés. Chorando, começou a molhar-lhe os pés com suas lágrimas. Depois os enxugou com seus cabelos, beijou-os e os ungiu com o perfume.
Ao ver isso, o fariseu que o havia convidado disse a si mesmo: “Se este homem fosse profeta, saberia quem nele está tocando e que tipo de mulher ela é: uma ‘pecadora’.
Então lhe disse Jesus: “Simão, tenho algo a lhe dizer”.
“Dize Mestre”, disse ele.
“Dois homens deviam a certo credor. Um lhe devia quinhentos denários e o outro, cinquenta.
Nenhum dos dois tinha com que lhe pagar, por isso perdoou a dívida a ambos. Qual deles o amará mais?
Simão respondeu: “Suponho que aquele a quem foi perdoada a dívida maior”.
“Você julgou bem”, disse Jesus.
Em seguida, virou-se para a mulher e disse a Simão: “Vê esta mulher? Entrei em sua casa, mas você não me deu água para lavar os pés; ela, porém, molhou os meus pés com suas lágrimas e os enxugou com seus cabelos.
Você não me saudou com um beijo, mas esta mulher, desde que entrei aqui, não parou de beijar os meus pés.
Você não ungiu a minha cabeça com óleo, mas ela derramou perfume nos meus pés.
Portanto, eu lhe digo, os muitos pecados dela lhe foram perdoados; pois ela amou muito. Mas aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama”.
Dois mil anos depois, a História se vê ainda empacada e embasbacada diante dessa personagem que fazia absoluta questão de mostrar que a medida do seu amor era amar sem medida…
Autor: Eduardo Machado
Fonte: Amai-vos