Olhar pascal
Sob a ótica superficial e vazia do consumismo, acho perfeito que o símbolo dessa páscoa colorida, sedutora e saborosa, encontrada nos supermercados, seja um ovo de chocolate bem embalado, convidativo, caro e oco! Esse ano havia anúncios que ofereciam até ovos à prestação. Páscoa pelo crediário! Mas o máximo do luxo eu vi numa reportagem da TV: uma confeitaria chique em São Paulo, produziu ovos com recheio de fios de ouro. Ouro mesmo, e comestível, segundo o repórter.
Tudo isso está na mídia, para que todo mundo veja, comente, consuma.
Mas o cristão, eu aprendi e tenho tentado ensinar, é aquele que vê o que todo mundo vê, mas de um MODO diferente. Vê mais longe, vê além, vê mais fundo…
E é assim que convido vocês a olhar comigo o tempo pascal que estamos vivendo.
Olhando longe…
A primeira experiência pascal é do povo hebreu. Cerca de 1300 anos antes de Cristo. Muita gente se lembra de alguma coisa dessa história. A saga dos descendentes de José do Egito que se multiplicaram em terra estrangeira e se viram submetidos a cruel escravidão. Deus VÊ a realidade do seu povo, ouve o seu clamor e se compadece.
E do olhar, à ação: toca o coração de Moisés e faz dele o libertador. Vem então o confronto com o Faraó, as pragas e flagelos. No último, o Anjo do Senhor passa e fere de morte os primogênitos do Egito, inclusive a casa do Faraó que, vencido, cede. Moisés inicia, então, a caminhada com o povo Hebreu em busca da Terra que Deus lhes prometera.
Mas o Faraó se arrepende e envia seus exércitos contra os fugitivos. Eles se vêem cercados, acuados diante do Mar Vermelho. Mais uma vez, a força de Deus os conduz na travessia, numa passagem cheia de simbolismo. De um lado fica a escravidão, o sofrimento. Do outro, a promessa de uma terra onde jorra leite e mel, onde se poderá viver em liberdade, louvando o Deus de Israel.
Conquistada a terra, o povo hebreu assimila essa história e a transforma em rito onde celebra, todos os anos, a passagem da escravidão para a liberdade. É o Pêssach, a Páscoa Judaica.
Olhando além…
Mais de mil anos depois encontramos Jesus com seus amigos ao redor de uma mesa. Como bons judeus eles se reúnem para celebrar a Páscoa Judaica. O rito é cheio de gestos, cantos, símbolos e alegria. Toda uma história que começou na casa de Abraão é ali celebrada. À mesa, ervas amargas lembram a escravidão. Mas o cordeiro pascal, o pão, o vinho, falam, em sua fartura, da alegria de ser o povo escolhido por Javé.
Mas algo misterioso acontece naquela ceia. Jesus, em dado momento, apropria-se dos símbolos da Páscoa Judaica e dá a eles um outro sentido, mais amplo, universal. Já não é mais apenas um povo, fechado em si mesmo, em suas tradições, que é chamado a sentar-se à mesa do Senhor. Jesus fala de uma ‘nova e eterna aliança com todos os homens…’. Parte o pão e revela que o seu corpo também será ‘partido’. O vinho, brinde à vida, antecipa o sangue que será derramado em gesto de amor pleno. E ao final, Ele convida a fazer de tudo isso memória viva da sua presença. Desde sempre, desde então, Ele está no meio de nós…
As horas seguintes confirmam cada palavra dita ao redor daquela mesa. Em Jesus, uma passagem também acontece. Ele passa pela escravidão feita de traição, prisão, julgamento, tortura e condenação. Na cruz, o sinal de uma derrota aparentemente total. Aquele que passou pela vida fazendo o bem é agora prisioneiro de um túmulo de morte.
Mas no amanhecer do domingo, o dia do Senhor… a travessia se completa. Passando da escravidão da Morte para liberdade da Vida, Deus faz a nova Páscoa acontecer. A Ressurreição é a Páscoa de Jesus de Nazaré.
Olhando fundo…
Dois mil anos depois somos nós os convidados a celebrar a Páscoa.
Mas de que Páscoa estamos falando? O ovo oco? Essa corrida aos supermercados para comprar o último lançamento das fábricas de chocolate? A bacalhoada ou a peixada para cumprir o jejum e a abstinência? A confissão e a comunhão, ao menos uma vez, pela Páscoa da Ressurreição? A ressaca do feriadão?
Que Páscoa é essa?
Ela continua sendo, para cada um de nós, convite a passar da Morte para a Vida, da Escravidão para a Liberdade. Para celebrar a verdadeira Páscoa, cada um de nós, como cristão, precisa, primeiro, se perguntar: o que é hoje, Escravidão e Morte em mim e à minha volta? Do que preciso me libertar. O que precisa nascer de novo?
O Tempo da Quaresma, que sabiamente precede o Tempo Pascal, é ocasião para este questionamento profundo. Tempo de Penitência e Conversão. Penitência é voltar-se para Deus, buscá-lo com intensidade amorosa. Conversão é mudar o rumo da vida para Dele se aproximar.
O mapa do caminho segue o roteiro da vida interior, a oração, e se realiza na vida comunitária, nas relações construídas com o povo que caminha conosco, ao nosso lado, em nós. Sentimentos, lembranças, acontecimentos, relações, tudo pede para ser colocado diante do Pai.
E ao Pai, suplicamos: coloca-nos com Teu Filho Ressuscitado…
E no coração que ‘guarda todas as coisas’, o Espírito de Deus sussurra.
Ressuscitar é fazer passagem. É acolher e viver a presença transformadora de Deus, no cotidiano.
Onde há rancor, passar ao PERDÃO.
Onde há angústia, passar à SERENIDADE.
Onde há violência, passar à PAZ e à MISERICÓRDIA.
Onde há medo, passar à CORAGEM.
Onde há alienação, passar à CONSCIÊNCIA.
Onde há a indiferença, passar à SENSIBILIDADE.
Onde há o consumismo, passar à SIMPLICIDADE.
Onde há insegurança, passar a afirmar nossas poucas e preciosas CERTEZAS.
Onde há solidão passar à SOLIDARIEDADE.
Onde há egoísmo, passar a semear gestos concretos de AMOR.
E assim, contaminar de Luz as trevas que criamos ou que são criadas sobre nós, e que sufocam a alegria para a qual fomos criados desde sempre e para sempre.
Autor: Eduardo Machado