Por uma oração que nos faça mais humanos

Publicado em 12/06/2013 | Categoria: Notícias |


                Atualmente, em contexto de pós-modernidade, de crise de todas as instituições, de fragmentações, de fundamentalismos, de violência crescente, de correria, de estresse, muita gente está buscando um oásis de paz em experiências de oração, em grupos de louvores etc. “A oração é tudo”, dizem uns. “O importante é ser solidário e lutar por justiça”, dizem outros. Diante desse quadro, faz bem refletir, pois certos tipos de oração reforçam processos de alienação e de fuga mundi.

Orar, sim, humaniza, mas não qualquer tipo de oração. A questão essencial não é orar ou não orar, mas que tipo de oração praticar. Muitas vezes, inconscientemente e involuntariamente, vários tipos de oração transferem para Deus responsabilidades que são nossas. O Evangelho de Lucas revela um Jesus orante, que cultiva a intimidade com o Pai pela oração. Jesus se prepara, por meio da oração, para um encontro face a face, olho a olho, com o Pai, com os outros e consigo mesmo. Uma oração libertadora mergulha-nos no mais profundo da nossa subjetividade, lá onde as palavras se calam e a voz de Deus se faz ouvir como apelo e desafio.

O autor do evangelho de Lucas dá uma importância muito grande à comunicação com Deus, de modo efetivo e afetivo. A apresentação de Jesus orante é de suma importância para o discípulo, porque uma das atitudes fundamentais do seguimento de Jesus é precisamente a contínua comunicação com Deus, mistério de amor que nos envolve.

Jesus reza nos momentos mais importantes da sua vida. A ênfase na oração aparece já desde a primeira narrativa do evangelho de Lucas sobre o anúncio do nascimento de João Batista e de Jesus (1,10-11.13)1. O anjo aparece enquanto a comunidade está rezando. Lucas fala da eficácia da oração na vida das pessoas que perseveram na oração (Lc 19,6-8). Ao receber o batismo, Jesus encontrava-se em oração (Lc 3,21); sua fama se difundia e ele se retirava em oração (Lc 5,16). Os discípulos de João Batista rezavam (Lc 5,33). “Enquanto rezava, seu rosto se transfigurou”, diz Lucas sobre Jesus (Lc 9,29). “Antes de escolher os doze, retirou-se em oração toda a noite” (Lc 6,12). Em oração perguntou aos discípulos: Quem dizem os homens que eu sou?” (Lc 9,18). “Subiu ao monte para orar acompanhado” (Lc 8,28). O modo de orar de Jesus seduzia e cativava os discípulos que lhe pediam: “Ensina-nos a rezar!” (Lc 11,1). Para mostrar a necessidade de orar sempre (Lc 18,3), Jesus contou a parábola da viúva que clamava por justiça ao juiz. Jesus rezou por Pedro para que a fé deste não desfalecesse (Lc 22,32). “Dobrando os joelhos orava” (Lc 22,41). Na cruz revelou-se cheio de ternura pelos seus algozes ao rezar: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e “clamando Jesus com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos, entrego o meu espírito” (Lc 23,46).

Lucas revela também as circunstâncias em que Jesus reza: sozinho, na montanha, “como de costume” (Lc 22,39). O evangelista não se contenta com a mera indicação de que Jesus se retirava freqüentemente para orar (Lc 5,16; 6,12). Em certas ocasiões chega a dizer como orava e qual era o conteúdo da sua oração, como em Lc 10,21-24, que Jesus se alegra porque os pequenos e humildes acolhem a sua mensagem2. Lucas é o único evangelista que coloca na boca dos discípulos de Jesus um pedido extraordinariamente significativo: “Senhor, ensina-nos a orar…”. Os militantes do movimento de Jesus queriam aprender a falar com Deus (Lc 11,1).

Os discípulos(as) de Jesus são convidados(as) a rezar o Pai-nosso (Lc 11,1), a perseverar na oração (Lc 18,1ss; 21,36), a rezar com fé e com a familiaridade de um amigo (11,9-13), com a convicção de alcançar o que pedem; na luta pela justiça (Lc l8,1-8), com a humildade do publicano (Lc 19,9-14), a confiança do filho que abandonou o Pai (Lc 15,21) e com a consciência de Pedro que se sente pecador (Lc 5,8).

Lucas nos leva a perguntar: para que orar? Intuímos que é para dilatar o coração e ser capaz de amar como Jesus amou. Amar não apenas quem nos ama, mas adquirir a capacidade da mãe que ama irrestritamente o filho deficiente ou o filho que está mergulhado no crime. Amar, inclusive, o inimigo, aquele de quem você não pode esperar nada de bom como recompensa. Paulo Freire nos ensina: “A melhor forma de amar os opressores – inimigos – é fazer o possível e o impossível para retirar das mãos deles as armas da opressão.”

A palavra coração contém a palavra oração, sinal de que oração tem muito a ver com coração. Para o povo judeu, o coração é a sede das opções fundamentais da vida, é o lugar das grandes decisões (Lc 6,45). Uma oração verdadeira leva-nos ao coração da vida, habilita-nos a ouvir o inaudível. É imprescindível aprendermos a ouvir o coração (e estômago, pés, mãos…) das pessoas, seus sentimentos mudos, os medos inconfessos e as queixas silenciosas. Entender o que está errado e atender às suas reais necessidades contribuindo para que percebam a íntima relação existente entre tudo. Estabelecer conexões é vital, pois só isso viabiliza tomada de consciência que analisa de forma crítica e criativa qualquer problema. Nada nunca tem só dois lados, muitas vezes três ou muitos e muitos outros lados.

Oração é como a relação entre duas pessoas que se amam: do flerte, repleto de indagações e fascínio, nasce a proximidade. O namoro é feito de preces, pedidos e louvores. O noivado favorece a intimidade de quem se abre inteiramente à presença do outro. A relação amorosa vira os amados pelo avesso. Palavras já não são necessárias. O silêncio desejado plenifica. Enfim, as núpcias, essa simbiose que levou o apóstolo Paulo a exclamar: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Pela oração a gravidez do Espírito, o vazio de si, que ao mesmo tempo se abre totalmente a Deus (Lc 1,28). A oração defendida por Lucas vai por esse caminho, sobre os trilhos que conduzem um processo de humanização.

A oração de Jesus é água que faz a planta da fé vicejar com a contribuição do sol (o transcendente). Se não é regada, a planta morre ressequida. Ao orar, deixamo-nos possuir por um Outro que é mais íntimo a nós do que nós mesmos.

Segundo o livro de Atos dos Apóstolos, uma das colunas mestras que sustentavam a vida das primeiras comunidades cristãs era a oração. Oravam comunitariamente (At 12,12) e cultivavam um novo ambiente na vida em comum. Perseveravam na oração (At 1,14; 2,42; 6,4; 10,2) nas casas, no templo (At 3,1), às margens do rio (At 16,13), na praia (At 21,5) etc. Pela oração, criava-se familiaridade com o Espírito Santo (At 4,31; 8,15; 10,30; 22,17) e consagravam-se líderes da comunidade a serviço da Palavra e da assistência social (At 6,6; 9,11). Visitantes também entravam no clima de oração (At 16,13). Pela oração, os seguidores (as) de Jesus permaneciam unidos entre si e a Deus (At 5,12b), fortaleciam-se nas tribulações3 (At 4,23-31) e faziam discernimento crítico e criativo (At 1,24; 13,3). As orações eram libertadoras (At 28,8) e acolhidas por Deus (At 10,4.31). A comunidade rezava pelos que tinham sido presos na perseguição (At 12,5) e, muitas vezes, jejuava enquanto orava (e vice-versa). Fazia como Jesus, que, pela oração, enfrentava as tentações (Mc 14,32; At 8,24; 16,25). Um dos momentos fundamentais em Atos dos Apóstolos é a transformação de Pedro (At 10,1–11,18), durante sua convivência com os excluídos, representados por Simão, o curtidor de couro (At 9,43). Lucas reafirma que essa experiência foi vivenciada em clima de oração (At 10,9; 11,5).

A grande literata e mística espanhola Teresa D’Ávila dizia que a oração é como a respiração, necessidade essencial para convivermos nos humanizando. Dom Pedro Casaldáliga gosta de dizer: “Impossível ser pessoa cristã sem rezar/orar pelo menos trinta minutos por dia”. Mas uma oração que nos faça mais humano, mais solidário e comprometido com a causa dos oprimidos. Não uma oração que tranqüiliza consciência e repassa para Deus tarefa que é nossa.

Texto de Gilvander Luís Moreira

Fonte: Dom Total



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