Eu já era “verde” e não sabia…
Tem gente que pensa que essa “onda verde” de preocupações ecológicas, sustentabilidade, consumo consciente, é coisa dos tempos modernos. Nem tanto. O que mudou, e muito, foi a intensidade e competência do marketing que hoje se faz em torno de ações que, antes, eram naturais.
Quando eu era menino, ou seja, ainda dentro do nosso tempo histórico, meu e do caro leitor, as garrafas de leite, de refrigerante e cerveja eram de vidro e deviam ser devolvidas na hora da compra de outra unidade. A loja mandava os “cascos” vazios de volta às fábricas onde eram lavados e esterilizados, podendo, assim, ser reutilizados inúmeras vezes.
A vida se concentrava nos bairros, mas se precisássemos ir ao centro da cidade para uma consulta médica ou ir ao dentista, por exemplo, em geral subíamos escadas, porque não havia escadas rolantes nos edifícios, lojas e escritórios. Lembro-me quando foram inauguradas as primeiras escadas rolantes de BH, na Galeria do Ouvidor. A gente ia lá para conhecer e passear na novidade. Vejam só o programa de sábado; passear em escada rolante…
De volta pra casa, caminhávamos até o armazém da esquina para fazer compras na caderneta. Para quem não sabe, a caderneta era usada em estabelecimentos comerciais tipo padarias, farmácias, vendas e assemelhados. O balconista entregava o produto e anotava o valor a lápis, na página onde havia o nome do freguês. No final do mês era só ir lá, somar e acertar. Simples como a vida.
Não havia super nem hiper-mercados, com estacionamentos caros e lotados de carros de 300 cavalos de potência usados para andar dois quarteirões. A polêmica sobre o uso das sacolinhas plásticas nem passava pela cabeça dos consumidores que levavam, de casa, uma sacola de pano ou de lona listrada que era usada quantas vezes fosse necessário. Isso quando a montanha, ou melhor, o produto não chegava a Maomé através de um ecológico delivery: de bicicleta, vinham a nós o verdureiro, o padeiro, o peixeiro, o leiteiro e outros vendedores a quem conhecíamos pelo nome e pela qualidade dos produtos oferecidos.
As fraldas dos bebês eram lavadas, porque não havia fraldas descartáveis. Aliás, a palavra ‘descartável’ era uma ilustre desconhecida. Para secar as fraldas de pano, energia eólica e solar, ou seja, o varal. Nada de turbinadas e barulhentas máquinas de lavar e secar. E lá em casa, com a escadinha de seis filhos, o varal era sempre uma festa onde “nossas roupas comuns, dependuradas na corda, qual bandeiras agitadas, pareciam um estranho festival…”
E as roupas eram mesmo “em comum”. Eu, sendo o mais velho daquela penca de seis irmãos, tinha o privilégio de inaugurar a camisa do uniforme escolar. Os irmãos menores iam “herdando” as roupas que tinham sido dos irmãos mais velhos, que eram usadas, cerzidas, ajustadas até a exaustão. E a gente achava essa reciclagem a coisa mais natural do mundo.
Havia só uma tomada em cada quarto, e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos. E nós não precisávamos de um GPS para receber sinais de satélites a milhas de distância no espaço, só para encontrar a pizzaria mais próxima. A pizza era feita em casa mesmo.
Naquela tomada ligava-se uma única TV, uma só pra todo mundo da casa, e não uma TV em cada quarto. Sem controle remoto, ligar e desligar, mudar de canal, ajustar o som e mexer na antena exigiam constantes exercícios abdominais no senta e levanta do sofá. Mas nem precisava de TV, pois havia um cinema “Paradiso” em cada bairro e a gente ia a pé para a matinê.
Naquela era pré-McDonalds, terminado o filme, voltávamos correndo pra casa para curtir o lanche. Nada de Hambuguer, X-Burguer, X-Tudo. Sem praça de alimentação, sem as geringonças elétricas e eletrônicas que fazem tudo por nós, minha mãe, avó e tias colocavam a mão na massa no preparo de roscas e biscoitos caseiros, bolos fantásticos, doces inesquecíveis. E cada uma tinha sua especialidade.
Ninguém fazia empadinhas como Dinhaía, caçarola italiana como tia Elza, biscoitos de polvilho torcidinhos como vovó Nega, capa de canudinho (que a gente recheava de doce de leite na hora) como tia Célia, bolo como tia Délia, broa de fubá como dona Tutu e outros quitutes cuja lembrança dos sabores fazem minha memória salivar.
E mesmo com essas delícias nada diets à mesa, éramos magros e atléticos (com perdão da palavra), sem necessidade de dietas mágicas, sibutraminas e moderadores de apetite. Exercitar-se era comum no dia a dia, sem precisar ir a uma academia (que nem existiam) ou usar esteiras que também funcionam a eletricidade e hoje viram varais na área de serviço dos nossos modernos “apertamentos”.
Naqueles tempos não se usava um motor a gasolina para aparar a grama. Utilizava-se um tesourão ou um cortador que exigiam músculos. Mas isso foi num tempo em que havia quintais e gramados. Hoje, em tempos de playgrounds de cimento e campos de grama sintética… Sem playgrounds, nossa diversão era o futebol no campinho, as brincadeiras – bente-altas, pique-esconde, mãe-da-rua, garrafão e outras molecagens, sempre na rua, num tempo em que ser moleque e estar na rua eram as coisas mais naturais e saudáveis do mundo. Bebíamos água da bilha ou do filtro de barro, em canecas de alumínio que faziam com que a água parecesse ter saído diretamente da fonte. Nada de copos descartáveis ou garrafas pet que tornam-se lixo por séculos e séculos amém.
A caneta tinteiro Parker 51 do meu pai era recarregável. Para fazer a barba, ele amolava sua própria navalha, ao invés de jogar fora todos os aparelhos ‘descartáveis’ quando a lâmina fica sem corte.Ninguém gastava horas de estresse e litros de combustível para ir e voltar do trabalho. As pessoas tomavam o bonde ou ônibus sem atropelos, sem congestionamentos, sem hora do rush. Íamos à escola a pé ou de bicicleta, ao invés de usar a mãe como serviço de táxi 24 horas. É verdade que éramos bem menos e vivíamos menos assustados, pois não havia os Datenas para nos aterrorizar. No Estádio Independência, na era pré-Mineirão, o máximo de agressão entre cruzeirenses e atleticanos eram as torcidas, sentadas lado a lado, sem divisão, gritando “cachorrada!” e a outra respondendo, “refrigerados!”. Na verdade, já éramos ecológicos e tínhamos uma vida absolutamente sustentável.
Bons tempos, em que a gente era verde e não sabia…
Eduardo Machado