A voz do pastor – outubro
Lumen Fidei (parte 2)
Na década de 70, o livro Fernão Capelo Gaivota fez muito sucesso. Era a história de uma gaivota que queria voar para além do que permitiam suas asas e suas capacidades. Mas ela chega ao limite das forças. E quando o terrível limite se impõe, ameaçando todos os planos, quando ela já ia desistindo, uma velha gaivota se aproxima dela e lhe diz: Concentre-se no amor. O amor é a única saída.
O capítulo 1 da Lumen Fidei nos conduz direto a Abraão. Ele é o pontapé inicial da fé. Deus o chama pelo nome. Ele escuta. A fé está ligada à escuta, diz a encíclica. “A fé assume um caráter pessoal: o Senhor não é o Deus de um lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um tempo sagrado específico, mas o Deus de uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, capaz de entrar em contato com o homem e estabelecer com ele uma aliança. A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama por nome.”
É lindo esse trecho da encíclica.
Andando pelas terras de Abraão a primeira reação é a de espanto. Então, Abraão trocou a fertilidade da mesopotâmia pela secura de Israel? Sim. Foi exatamente isso. O que Deus prometeu a Abraão foi a fertilidade. Mas, justamente, para ser fértil, ele trocou a fertilidade dos rios pela areia do deserto. Como diz o Papa: não mais uma terra nem mesmo um tempo sagrado. O Deus de Abraão seria o Deus de uma pessoa, e se algo tivesse de ser fértil, se alguma fertilidade brotasse dessa experiência seria a fertilidade que cabe numa promessa. “A tua descendência será numerosa, serás pai de um grande povo” (Gn 13,16; 15,5; 22,17). “Esta Palavra comunica a Abraão uma chamada e uma promessa. Contém, antes de tudo, uma chamada a sair da própria terra, convite a abrir-se a uma vida nova, início de um êxodo que o encaminha para um futuro inesperado. A perspectiva, que a fé vai proporcionar a Abraão, estará sempre ligada com este passo em frente que ele deve realizar: a fé “vê” na medida em que caminha, em que entra no espaço aberto pela Palavra de Deus.”
A fertilidade que a promessa contém é a fertilidade da confiança. Abraão confiou. A fé dos que vieram depois – a de Israel e a da Igreja – se apoia nesse momento único da história da salvação: a confiança de Abraão. E, aos poucos, a fé faz apelo à confiança, a confiança à esperança, a esperança ao amor. Essa é a pedagogia de Deus. Mas a pedagogia de Deus precisa suportar desafios. Deus é desafiado. Deus é fiel. Há grandes idolatrias. Há grandes voltas. Quantas vezes for preciso ao homem, tantas vezes será Deus desafiado a continuar acreditando nele, suportando suas intolerâncias, confiando na sua descrença, amando-o por tudo quanto ele tenha de desamor. Essa é a pedagogia de Deus. Em seu amor, Deus suporta até os ídolos dos homens. Até mesmo que o homem se transforme em ídolo.
O papa tem uma palavra certeira a esse respeito.
“O ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da realidade, na adoração da obra das próprias mãos. Perdida a orientação fundamental que dá unidade à sua existência, o homem dispersa-se na multiplicidade dos seus desejos; negando-se a esperar o tempo da promessa, desintegra-se nos mil instantes da sua história. Por isso, a idolatria é sempre politeísmo, movimento sem meta de um senhor para outro. A idolatria não oferece um caminho, mas uma multiplicidade de veredas que não conduzem a uma meta certa, antes se configuram como um labirinto. (…) Acreditar significa confiar-se a um amor misericordioso que sempre acolhe e perdoa, que sustenta e guia a existência, que se mostra poderoso na sua capacidade de endireitar os desvios da nossa história. A fé consiste na disponibilidade a deixar-se incessantemente transformar pela chamada de Deus. Paradoxalmente, neste voltar-se continuamente para o Senhor, o homem encontra uma estrada segura que o liberta do movimento dispersivo a que o sujeitam os ídolos.” Nada é mais expressivo do que essas palavras.
Nossa sociedade se tornou idólatra. Não se fabricam mais bezerros de ouro a partir dos brincos das mulheres, como o fez o povo no deserto. Não! Nossos ídolos são mais sofisticados. Eles falam conosco nos nossos tablets, invadem nossa privacidade nos aparelhos de TV, preenchem nossos domingos nos gramados e nos autódromos, nos roubam de nós mesmos enquanto nos distraem. Seus santuários se multiplicam pelos centros de compras. Seu novo culto é a ideologia da eficiência e do resultado. Sua única exigência moral é o máximo de conforto e de bem estar. O mantra dessa idolatria é a palavra “mais”, “mais”, “cada vez mais”…
Alguma saída? Sim. A saída é o amor. Concentre-se no amor. Mas muita calma nessa hora. O amor muda de nomes. Amor mesmo é aquele que sai de si, que cede a vez, que deixa a palavra ao outro, que sai do centro, que assume a periferia da existência como o lugar de encontro com Deus. Concentre-se no amor.
É nisso que nos concentraremos no nosso próximo encontro. Até lá. Fiquem com a bênção e o amor de Deus.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
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Fonte: Arquidiocese de Niterói