Combate à fome precisa de transformações estruturais
Entrevista especial com Francisco Menezes
“Quando se morre de fome no Brasil é porque o Estado está completamente omisso em relação aos direitos de determinados grupos sociais. Melhoramos muito, mas, no Brasil mais profundo, onde os mais pobres são invisíveis para as políticas públicas, pode se morrer de fome”, frisa o pesquisador.
“A fome no Brasil está diretamente associada à extrema pobreza. Por isso, a superação da pobreza mais grave é o melhor caminho para erradicar a fome no país”, diz Francisco Menezes à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. De acordo com o pesquisador do Ibase, hoje o país é uma “referência como exemplo de êxito na aplicação de políticas públicas de combate à fome e de segurança alimentar e nutricional” por conta dos “resultados alcançados” com políticas de transferência de renda e, no caso do Nordeste, com a construção de cisternas.
Apesar das melhorias alcançadas nos últimos anos, acentua, “falta aprofundar o enfrentamento dos problemas, com uma perspectiva de transformações estruturais. Por exemplo, o que se fez, até agora, em relação à reforma agrária é muito pouco”.
Na avaliação de Menezes, com a globalização e a mercantilização da alimentação, a garantia da soberania alimentar fica mais difícil. O caminho para garanti-la, assinala, “é orientar a política de segurança alimentar, considerando que o alimento é um direito de todos, e não uma mercadoria”.
Francisco Menezes é graduado em Economia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, e tem pós-graduação em Desenvolvimento Agrícola pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Atualmente é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Segundo dados da FAO, o número de pessoas que passavam fome em 1992, cerca de 22,8 milhões, caiu para 13,6 milhões em 2012. Como o senhor avalia este dado? Qual o significado deste dado em duas décadas?
Francisco Menezes – Estimar o número de pessoas que passam fome traz o risco de apresentar resultados imprecisos, pois as pessoas que se encontram sujeitas a essa situação sempre vão buscar aplicar estratégias para escapar da fome. Nesse sentido é preferível falar em termos de vulnerabilidade, ou seja, aquelas que não dispõem de condições de acesso aos alimentos, seja por falta de poder aquisitivo, seja por impossibilidade de produzir para seu próprio consumo.
Provavelmente, os 13,6 milhões, em 2012, estão superestimados. De qualquer forma, foi expressiva a redução dessa vulnerabilidade, que ocorreu em função de políticas públicas, nos últimos 11 anos, voltadas para a melhoria da renda dos mais pobres, principalmente a transferência de renda, o aumento do valor do salário mínimo e a maior oferta de emprego. E, também, por políticas específicas de segurança alimentar, como a da alimentação escolar e o programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar, entre outras.
IHU On-Line – Como o Brasil se enquadra no contexto internacional em relação à questão da fome?
Francisco Menezes – O Brasil é hoje a grande referência como exemplo de êxito na aplicação de políticas públicas de combate à fome e de segurança alimentar e nutricional. Isto, devido aos resultados alcançados e pela forma de fazer, em que se destaca a participação social, por intermédio de conselhos e conferências. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO vem se inspirando em iniciativas experimentadas no Brasil, como a do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, para implantá-las em outros países, especialmente na África e na América Latina. Alguns programas, como a Política de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, também começam a ser experimentados em outros países.
IHU On-Line – Qual é a atual geografia da fome no Brasil? Em que estados a questão ainda é um problema?
Francisco Menezes – A vulnerabilidade à fome ou insegurança alimentar grave continua sendo maior nos estados do Nordeste e Norte do Brasil, apesar dos avanços significativos que vêm sendo registrados, principalmente na região Nordeste.
IHU On-Line – Por que o Norte e o Nordeste ainda apresentam quadros de insegurança alimentar incompatíveis com a riqueza nacional?
Francisco Menezes – É o resultado de séculos de muita pobreza e desigualdade, pois neles também existe riqueza muito concentrada. Políticas como a transferência de renda para os mais pobres (Bolsa Família e Bolsa Verde) e outros programas governamentais, como é o caso das cisternas, têm provocado melhoras significativas, mas falta aprofundar o enfrentamento dos problemas, com uma perspectiva de transformações estruturais. Por exemplo, o que se fez, até agora, em relação à reforma agrária é muito pouco.
IHU On-Line – Por que ainda se morre de fome no Brasil?
Francisco Menezes – Quando se morre de fome no Brasil é porque o Estado está completamente omisso em relação aos direitos de determinados grupos sociais. Melhoramos muito, mas, no Brasil mais profundo, onde os mais pobres são invisíveis para as políticas públicas, pode se morrer de fome. Porém, vivemos agora uma situação que precisa ser bem avaliada, pois ela nos ensina muito. O semiárido nordestino vive a mais grave seca dos últimos quarenta anos. Alguns municípios nessa região já vão para o terceiro ano seguido em situação de total estiagem.
Em outras ocasiões, mesmo com menor severidade da seca, assistimos à fuga dessas populações para outras áreas e, ainda, o problema da fome. Com essa seca, o problema não está ocorrendo, o que comprova a importância das políticas públicas que vêm sendo aplicadas.
IHU On-Line – Recentemente o senhor declarou que o grupo que mais enfrenta dificuldades em relação à fome são os indígenas. Qual é a situação deles em relação a esta questão e que alternativas vislumbra para sanar este problema?
Francisco Menezes – Esta é uma situação que deveria envergonhar a todos os brasileiros. Os indígenas, em algumas áreas onde habitam, como ocorre no Mato Grosso do Sul, vivem situações de pobreza extrema e, sobretudo, as crianças enfrentam situações de desnutrição, algumas vezes fatais. Por trás dessa tragédia está o crescimento do agronegócio, invadindo terras que sempre foram de nossos indígenas e que, por meio do cultivo que realizavam nelas, asseguravam a alimentação e a preservação de suas culturas.
IHU On-Line – Como alcançar a soberania alimentar no Brasil? Que política seria necessária para erradicar a fome no país?
Francisco Menezes – A soberania alimentar significa a condição de o país poder garantir alimentação para toda sua população, livre das imposições do mercado. Poder definir o que vai produzir, como vai produzir e para quem vai produzir. Hoje, com a globalização e a mercantilização da alimentação, essa garantia torna-se mais difícil, mas é possível chegar a ela. O caminho é orientar sua política de segurança alimentar, considerando que o alimento é um direito de todos, e não uma mercadoria. Ao lado disso, a fome no Brasil está diretamente associada à extrema pobreza. Por isso, a superação da pobreza mais grave é o melhor caminho para erradicar a fome no país.
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Fonte: Unisinos