A Voz do pastor – dezembro
Lumen Fidei (parte 4)
Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom para si mesmo. É com essa firmeza que o Papa Francisco inicia a quarta parte da encíclica Lumen Fidei. É com essa mesma firmeza que desejo chegar até vocês, irmãos e irmãs, neste Natal de 2013, com uma palavra que inspire confiança no meio de um mundo desabitado de esperança. A luz da Fé “é uma luz que se reflete de rosto em rosto, como sucedeu com Moisés cujo rosto refletia a glória de Deus depois de ter falado com Ele: Deus brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo” (2Cor 4,6). A luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho – diz o Papa – e assim ela se difunde chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e refletir para outros a sua luz, da mesma forma que a luz do círio, na liturgia de Páscoa, acende muitas outras velas. Que imagem feliz essa do Círio Pascal no qual são acesas todas as velas e todos os corações naquela noite abençoada. A fé transmite-se sob a forma de contato, de pessoa a pessoa, como uma chama se acende noutra chama. Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma semente tão fecunda que se torna uma grande árvore, capaz de encher o mundo de frutos. Encerrando o Ano da Fé e às portas do Santo Natal, não haveria melhores palavras com que se pudesse dizer algo que transcende o próprio ato de falar.
A principal preocupação do Papa nesta carta-encíclica não foi nem a vida nem a história nem mesmo os ensinamentos de Jesus, mas a sua espiritualidade, o alimento que o unia constantemente a seu Pai. A minha maior preocupação quando escrevo para vocês é descobrir que Jesus, ele mesmo, não falou muito nem expôs demasiado a sua própria vida espiritual. Sabemos que ele passava longas noites a sós com o Pai, o seu Abbá querido. Mas não temos nenhuma menção do que ele falava com o Pai, nenhum escrito contendo o conteúdo dessa conversa íntima. Os três únicos escolhidos e privilegiados a participarem desses momentos, Pedro, Tiago, João, na Transfiguração e no Horto ficaram tão transpassados que, da primeira ocasião, nada souberam contar além de umas imagens, e na segunda, simplesmente, dormiram.
O único jeito de chegar à espiritualidade de Jesus é debruçando-nos sobre o que ele fez e ensinou. Havia uma espiritualidade subjacente à vida. No entanto, não saberemos qual era o segredo da sua vida extraordinária e, sem dúvida, da sua morte. A que é que Jesus era profundamente sensível? Por que ele se tornou tão profundamente amado e admirado por uns e tão perseguido por outros?
Não há como saber dele, senão indo atrás das pegadas que deixaram dele os que o amaram: os apóstolos, os evangelistas, os santos, os místicos. A transmissão da fé, que brilha para as pessoas de todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em geração. Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina o nosso caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de Jesus. Como é possível isto? Como se pode estar seguro de beber no « verdadeiro Jesus » através dos séculos? – pergunta o Papa. Se o homem fosse um indivíduo isolado, se quiséssemos partir apenas do « eu » individual, que pretende encontrar em si mesmo a firmeza do seu conhecimento, tal certeza seria impossível; não posso, por mim mesmo, ver aquilo que aconteceu numa época tão distante de mim. Mas, esta não é a única maneira de o homem conhecer; a pessoa vive sempre em relação: provém de outros, pertence a outros, a sua vida torna-se maior no encontro com os outros; o próprio conhecimento e consciência de nós mesmos são de tipo relacional e estão ligados a outros que nos precederam… São encantadoras e certeiras as palavras do Papa Francisco.
É isso. Jesus é um acontecimento. Muito mais que um fato, um dado, um ato, Jesus é um gesto. Um gesto que transforma a História, e a transforma de dentro para fora, do único lugar de onde é possível alguma transformação. Jesus viveu num mundo muito diferente do nosso. Existe um profundo abismo entre nós e os contemporâneos dele na palestina do século I. No entanto, em que pesem todas as diferenças, algo permaneceu inalterado através dos longos 21 séculos que nos separam: Jesus tinha como certo que Deus era uma pessoa. Sua fé – sim, porque Jesus teve de acreditar no seu Abbá e apostar tudo nele – não continha um conjunto de teorias. Não. Um conjunto de teorias não é suficiente para moldar e conduzir uma vida. Em sua fé estava contida apenas uma certeza, inabalável como a rocha, a de que o Pai estava ali, com ele, em cada respiração, em cada pensamento, nos menores passos, nas grandes decisões. O Deus-tão-pessoal-de-Jesus, o seu querido Abbá, foi o que ele nos deixou, é o seu legado, sua herança repartida junto com o manto, em quatro partes, em todas as partes, junto à Cruz.
Natal! Volto à minha terra, volto à minha infância, volto às minhas recordações de mineiro longe da terra, aos doces que as tias faziam, à ceia depois da Missa do Galo e à própria Missa, a solene celebração da chegada do Menino Deus, quando o celebrante depositava e incensava o Menino no presépio ao canto do coral. Natal! Quanta lembrança me traz!
Mas não estou no exílio. Posso estar longe da terra, mas nunca no exílio. Tenho Deus comigo: Ele é a minha pátria. Tenho vocês comigo: vocês são o meu lar. Feliz Natal! Em cada rosto feliz de criança, tenha ela a idade que tiver, neste Natal, Deus se fará presente outra vez, de novo e sempre, porque Ele é a nossa segurança e a nossa Paz. Feliz Natal!
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
Fonte: Arquidiocese de Niterói