A Voz do Pastor – Janeiro/14
Lumen Fidei (parte 5)
O capítulo IV da Lumen Fidei nos fala da cidade preparada por Deus para aqueles que o amam. Nós podemos dizer que nossa pátria é a fé que nos une. Recordo-me do relato de uma senhora que vivia na China, a trabalho, e da emoção que ela sentiu quando encontrou pela primeira vez uma igreja católica. “Eu caminhava à deriva, nos primeiros dias em solo chinês, sem saber pra onde deveria ir, quando avistei, ao longe, uma torre branca. Seria o que eu estava pensando? Caminhei sem parar e sem perder de vista a torre branca. Quando cheguei, era realmente o que eu previ: uma igreja dedicada à Imaculada Conceição. Entrei. E lá estavam todos os meus símbolos, todos os meus cheiros, toda a minha devoção. Ajoelhei-me, e disse, emocionada: Estou em casa!”
É isso que a Encíclica fala. “Ao apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens possam habitar uns com os outros”. A fé é a casa: aí sempre estaremos em casa. Noé, Abraão, os patriarcas e os profetas, todos fizeram da fé uma casa, uma cidade, com “uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem de fé assenta sobre o Deus-Amém, o Deus fiel (Is 65, 16), tornando-se assim firme ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se refere também à cidade que Deus está a preparar para o homem”. E mais: a fé cria vínculos, estreita vínculos. “A fé revela como podem ser firmes os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável”.
O Papa falou em cidade fiável. Vez em quando, vejo nas pessoas a dificuldade de discernir fé e confiança. Não é fácil. Eu mesmo me confundo e uso uma palavra com sentido de outra. Dou uma distinção que só vale para mim, mas que dou de presente para quem quiser usá-la. A fé se refere a um conteúdo no qual acreditamos. A confiança se refere a uma pessoa a quem entregamos nossa vida. Eu tenho fé em Jesus Cristo, ou seja, eu creio em tudo aquilo que Jesus disse e propôs. Mas, além disso, eu confio nele, na fiança que ele faz em meu favor, no fato dele ser meu fiador junto ao Pai. E, nesse sentido, talvez seja ele quem confie mais em mim! Só sei que há vezes em que não conseguimos seguir o que ele quer de nós. Não conseguimos responder. Então, se nessa hora, falhamos na fé, não podemos falhar na confiança. E podemos dizer: Não foi dessa vez, mas eu confio que será da próxima. E mais: eu confio que o Senhor não me abandonará nem se desanimará de me esperar. E ainda mais: eu confio que o Senhor não deixará de confiar em mim.
É aí que fé a amor se juntam. “Devido precisamente à sua ligação com o amor (Gl 5, 6), a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. A fé nasce do encontro com o amor gerador de Deus que mostra o sentido e a bondade da nossa vida; esta é iluminada na medida em que entra no dinamismo aberto por este amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício para a plenitude do amor”. A luz da fé, diz o Papa, valoriza a riqueza das relações humanas, a sua capacidade de serem fiáveis, porque a fé nem afasta do mundo nem é alheia ao esforço concreto dos homens. É o amor fiável que mantém os homens unidos. “A fé faz compreender a arquitetura das relações humanas, porque identifica o seu fundamento último e destino definitivo em Deus, no seu amor, e assim ilumina a arte da sua construção, tornando-se um serviço ao bem comum”.
Essa é uma ideia encantadora. A fé que professamos não se reduz nem se limita ao âmbito das práticas devocionais, da paróquia ou da sacristia. A Encíclica diz que “a fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um futuro de esperança.”
Esse é o ponto que mais me atrai nesse capítulo IV da Lumen Fidei: a fé é um bem que pertence ao gênero humano, que constrói a cidade humana, que alimenta a esperança de um futuro melhor, que nos tira da paralisia do medo e nos lança à frente e adiante. Meu irmão: não é apenas a estátua do Cristo Redentor que é patrimônio universal. Minha irmã: sua fé também é patrimônio universal. Quando perguntarem se você acredita em Deus, diga Sim, mas diga com sublime orgulho de pertencer a um número muito seleto de pessoas que também acredita na bondade das pessoas, no futuro do mundo, na honestidade dos projetos humanos, na proposta da política como arte de convivência, na proposta da ciência como arte de sustentabilidade, na proposta da criação como cenário onde encontrar a Face do Criador. E, sobretudo, na proposta da fé como meio de juntar todos os pontos soltos e costurar o tecido das relações humanas como a túnica inconsútil do Senhor. “As mãos da fé levantam-se para o céu, mas fazem-no ao mesmo tempo em que edificam, na caridade, uma cidade construída sobre relações que têm como alicerce o amor de Deus”. Será que é preciso dizer mais?
O restante do capítulo é muito rico. Vai falar da fé nas relações familiares e da fé como âncora nos sofrimentos da vida. Termino com um último pensamento desse capítulo, onde, mais uma vez, o Papa Francisco demonstra uma capacidade imensa em lidar com os conceitos e as palavras que tentam defini-los. “Unida à fé e à caridade, a esperança projeta-nos para um futuro certo, que se coloca numa perspectiva diferente relativamente às propostas ilusórias dos ídolos do mundo, mas que dá novo impulso e nova força à vida de todos os dias. Não deixemos que nos roubem a esperança, nem permitamos que esta seja anulada por soluções e propostas imediatas que nos bloqueiam no caminho, que ‘fragmentam’ o tempo transformando-o em espaço. O tempo é sempre superior ao espaço: o espaço cristaliza os processos, ao passo que o tempo projeta para o futuro e impele a caminhar na esperança”.
Caminhemos com fé, esperança e caridade neste Novo Ano que começa!
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
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