“Não há contradição entre ser revolucionário e ir às raízes”. Entrevista com o Papa Francisco
Nosso sistema econômico mundial não se sustenta”, disse o Bispo de Roma em uma entrevista concedida ao jornal espanhol La Vanguardia. “Eu não tenho nenhuma iluminação; não trouxe debaixo do braço nenhum projeto pessoal”, garante. “Descartamos uma geração inteira pelo simples fato de manter um sistema que não é bom”, opina sobre os jovens desempregados. “Os cristãos perseguidos são uma preocupação que me toca de perto como pastor. Sei de muitas coisas sobre perseguições que não me parece prudente contar aqui para não ofender ninguém. Mas, em alguns locais é proibido ter uma Bíblia ou ensinar o catecismo ou levar uma cruz… Mas quero deixar claro uma coisa: estou convencido de que a perseguição contra os cristãos, hoje, é mais forte que nos primeiros séculos da Igreja. Hoje, há mais cristãos mártires do que naquela época. E não é por fantasia, é por números”. O Papa Francisco nos recebeu na segunda-feira passada no Vaticano – um dia após a oração pela paz com os presidentes de Israel e Palestina – para esta entrevista exclusiva ao La Vanguardia. O Papa estava contente por ter feito todo o possível pelo entendimento entre israelenses e palestinos.
A violência em nome de Deus domina o Oriente Médio. É uma contradição. A violência em nome de Deus não é uma exclusividade do nosso tempo. É algo antigo. Em perspectiva histórica é preciso admitir que os cristãos, às vezes, também a praticaram. Quando penso na Guerra dos Trinta Anos, era violência em nome de Deus. Hoje, é inimaginável, não é verdade? Chegamos, às vezes, pela religião, a contradições muito sérias, muito graves. O fundamentalismo, por exemplo. As três religiões têm seus grupos fundamentalistas, pequenos em relação a todo o resto. E qual é a sua opinião sobre o fundamentalismo? Um grupo fundamentalista, embora não mate ninguém, embora não ataque ninguém, é violento. A estrutura mental do fundamentalismo é a violência em nome de Deus. Alguns dizem que o senhor é um revolucionário. Deveríamos chamar a grande Mina Mazzini, cantora italiana, e dizer-lhe “prendi questa mano, zinga” e que leia o meu passado, para ver que… (risos) Para mim, a grande revolução é ir às raízes, reconhecê-las e ver o que essas raízes querem dizer nos dias de hoje. Não há contradição entre ser revolucionário e ir às raízes. Mais ainda, creio que a maneira de fazer verdadeiras mudanças é a identidade. Nunca se pode dar um passo na vida se não for de atrás, sem saber de onde venho, qual é o meu sobrenome, o sobrenome cultural ou religioso que eu tenho. O senhor quebrou muitos protocolos de segurança para aproximar-se das pessoas. Sei que pode me acontecer alguma coisa, mas isso está nas mãos de Deus. Recordo que no Brasil haviam preparado um papamóvel fechado, com vidros, mas eu não posso saudar um povo e dizer-lhe que gosto muito dele dentro de uma lata de sardinhas, mesmo que seja de vidro. Para mim, isso é um muro. É verdade que algo pode me acontecer, mas sejamos realistas: na minha idade, não tenho muito a perder. Por que é importante que a Igreja seja pobre e humilde? A pobreza e a humildade estão no centro do Evangelho e o digo num sentido teológico, não sociológico. Não se pode entender o Evangelho sem a pobreza, mas há que distingui-la do pauperismo. Eu creio que Jesus não quer que os bispos sejam príncipes, mas servidores. O que a Igreja pode fazer para reduzir a crescente desigualdade entre ricos e pobres? Está provado que com a comida que sobra seria possível alimentar as pessoas que têm fome. Quando você vê fotografias de crianças desnutridas em diversas partes do mundo, põe a mão na cabeça, não é possível entender! Creio que estamos em um sistema econômico mundial que não é bom. No centro de todo sistema econômico deve estar o homem, o homem e a mulher, e todo o resto deve estar a serviço deste homem. Mas nós colocamos o dinheiro no centro, o deus dinheiro. Caímos em um pecado de idolatria, a idolatria do dinheiro. A economia move-se pelo afã de ter mais e, paradoxalmente, alimenta-se uma cultura do descarte. Descarta-se os jovens quando se limita a natalidade. Também se descarta os idosos porque já não servem, não produzem, são uma classe passiva… Ao descartar as crianças e os idosos, descarta-se o futuro de um povo, porque as crianças projetam-se com força para frente e porque os anciãos nos dão a sabedoria, têm a memória desse povo e devem passá-la aos jovens. E agora também está na moda descartar os jovens pelo desemprego. Preocupa-me muito o índice de desemprego dos jovens, que em alguns países passa dos 50%. Alguém me disse que 75 milhões de jovens europeus menores de 25 anos estão desempregados. É uma barbaridade. Mas descartamos toda uma geração por manter um sistema econômico que já não se sustenta, um sistema que, para sobreviver, deve fazer a guerra, como sempre fizeram os grandes impérios. Mas como não se pode fazer a Terceira Guerra Mundial, então fazem-se guerras regionais. E o que isto significa? Que se fabricam e vendem armas, e com isto os balanços das economias idolátricas, as grandes economias mundiais, que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente se sanam. Este pensamento único tira a riqueza da diversidade de pensamento e, portanto, a riqueza de um diálogo entre pessoas. A globalização bem entendida é uma riqueza. Uma globalização mal entendida é aquela que anula as diferenças. É como uma esfera, com todos os pontos equidistantes do centro. Uma globalização que enriquece é como um poliedro, todos unidos, mas cada qual conservando sua particularidade, sua riqueza, sua identidade. Não é o que está acontecendo. Preocupa-lhe o conflito entre a Catalunha e a Espanha? Qualquer divisão me preocupa. Há independência por emancipação e há independência por secessão. As independências por emancipação, por exemplo, são as americanas, que se emanciparam dos Estados europeus. As independências de povos por secessão são um desmembramento e às vezes são muito óbvias. Pensemos na ex-Iugoslávia. Obviamente, há povos com culturas tão diversas que nem com cola pegam. O caso iugoslavo é muito claro, mas eu me pergunto se é tão claro em outros casos, em outros povos que até agora estiveram juntos. É preciso estudar caso a caso. A Escócia, a Padânia [região norte da Itália], a Catalunha… Haverá casos que são justos e casos que não são justos, mas a secessão de um país sem um antecedente de unidade forçada é preciso tomá-lo com muitas pinças e analisá-lo caso a caso. A oração pela paz do domingo não foi fácil de organizar nem tinha precedentes no Oriente Médio nem no mundo. Como se sentiu? Você sabe que não foi fácil. Eu sentia que era algo que escapava a todos. Aqui, no Vaticano, 99% diziam que não iria acontecer e depois o 1% foi crescendo. Eu sentia que nos víamos empurrados para uma coisa que não nos havia ocorrido fazer e que, pouco a pouco, foi tomando corpo. Não se tratava de um ato político – senti isso desde o início –, mas de um ato religioso: abrir uma janela para o mundo. Por que escolheu meter-se no olho do furacão que é o Oriente Médio? O verdadeiro olho do furacão, pelo entusiasmo que havia, foi a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro, no ano passado. Decidi ir à Terra Santa porque o presidente Peres me convidou. Eu sabia que seu mandato terminava nesta primavera. Dessa forma, me vi obrigado, de alguma maneira, a ir antes. Seu convite precipitou a viagem. Não estava nos meus planos. Por que é importante para todo cristão visitar Jerusalém e a Terra Santa? Pela revelação. Para nós, tudo começou aí. É como “o céu na terra”, uma antecipação do que nos espera no além, na Jerusalém Celeste. O senhor e seu amigo o rabino Skorka se abraçaram diante do Muro das Lamentações. Que importância teve este gesto para a reconciliação entre cristãos e judeus? Bom, no Muro estava também o meu bom amigo o professor Omar Abboud, presidente do Instituto do Diálogo Interreligioso de Buenos Aires. Quis convidá-lo. É um homem muito religioso, pai de dois filhos. Também é amigo do rabino Skorka e quero muito a ambos, e quis que esta amizade entre os três fosse vista como um testemunho. O senhor me disse há um ano que “dentro de cada cristão há um judeu”. Talvez o mais correto seria dizer que “você não pode viver seu cristianismo, você não pode ser um verdadeiro cristão, se não reconhecer sua raiz judaica”. Não falo de judeu no sentido semítico de raça, mas no sentido religioso. Creio que o diálogo inter-religioso tem que aprofundar isto, a raiz judaica do cristianismo e o florescimento cristão do judaísmo. Entendo que é um desafio, uma batata quente, mas se pode fazer como irmãos. Eu rezo todos os dias o Ofício Divino com os Salmos de Davi. Passamos os 150 Salmos numa semana. Minha oração é judaica, e depois tenho a eucaristia, que é cristã. Como vê o antissemitismo? Não saberia explicar porque existe, mas creio que está muito unido, em geral e sem que seja uma regra fixa, à direita. O antissemitismo costuma aninhar-se melhor nas correntes políticas de direita que de esquerda, não? E continua até hoje. Há, inclusive, quem negue o holocausto, uma loucura. Um dos seus projetos é abrir os arquivos do Vaticano sobre o holocausto. Trarão muita luz. Preocupa-lhe alguma coisa que possa ser descoberta? Neste tema o que me preocupa é a figura de Pio XII, o Papa que liderou a Igreja durante a Segunda Guerra Mundial. Jogaram tudo em cima do pobre Pio XII. Mas é preciso lembrar que antes era visto como o grande defensor dos judeus. Ele escondeu muitos nos conventos de Roma e de outras cidades italianas, e também na residência de verão de Castel Gandolfo. Ali, na casa do Papa, em seu próprio quarto, nasceram 42 nenês, filhos de judeus e outros perseguidos ali refugiados. Não quero dizer que Pio XII não tenha cometido erros – eu mesmo cometo muitos –, mas seu papel deve ser relido no contexto da época. Era melhor, por exemplo, que não falasse para que não matassem mais judeus, ou que o fizesse? Também quero dizer que, às vezes, tenho um pouco de urticária existencial quando vejo que todos atacam a Igreja e Pio XII, e se esquecem das grandes potências. Você sabe que conheciam perfeitamente a rede ferroviária dos nazistas que levavam os judeus aos campos de concentração? Tinham fotos. Mas não bombardearam esses trilhos. Por quê? Será bom que falássemos de tudo um pouquinho. O senhor se sente ainda como um pároco ou assume seu papel de cabeça da Igreja? A dimensão de pároco é a que mais mostra a minha vocação. Servir as pessoas vem de dentro de mim. Desligo a luz para não gastar muito dinheiro, por exemplo. São coisas de um pároco. Mas também me sinto Papa. Ajuda-me a fazer as coisas com seriedade. Meus colaboradores são muito sérios e profissionais. Tenho ajuda para cumprir com meu dever. Não devo dar uma de Papa pároco. Seria imaturo. Quando vem um chefe de Estado, tenho que recebê-lo com a dignidade e o protocolo que merece. É verdade que tenho meus problemas com o protocolo, mas é preciso respeitá-lo. O senhor está mudando muitas coisas. Para que futuro estas mudanças estão levando? Não tenho nenhuma iluminação. Não tenho nenhum projeto pessoal que trouxe debaixo do braço, simplesmente porque nunca pensei que me deixariam aqui, no Vaticano. Todo o mundo sabe disso. Vim com uma malinha para voltar logo em seguida para Buenos Aires. O que estou fazendo é cumprir o que os cardeais refletiram nas Congregações Gerais, ou seja, nas reuniões que, durante o Conclave, tiveram todos os dias para discutir os problemas da Igreja. Daí saem reflexões e recomendações. Uma recomendação muito concreta era que o próximo papa deveria contar com um conselho externo, isto é, com uma equipe de assessores que não morassem no Vaticano. E o senhor criou o chamado Conselho dos Oito. São oito cardeais de todos os continentes e um coordenador. Reúnem-se a cada dois ou três meses aqui. Agora, no dia primeiro de julho teremos quatro dias de reunião, e vamos fazendo as mudanças que os próprios cardeais nos pedem. Não é obrigatório que o façamos, mas seria imprudência não ouvir os que sabem. Também fez um grande esforço para aproximar-se da Igreja ortodoxa. A ida a Jerusalém do meu irmão Bartolomeu foi para comemorar o encontro de 50 anos atrás entre Paulo VI e Atenágoras. Foi um encontro depois de mais de mil anos de separação. Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja católica faz os esforços para se aproximar e a Igreja ortodoxa, o mesmo. Com algumas Igrejas ortodoxas há mais proximidade do que com outras. Eu quis que Bartolomeu estivesse comigo em Jerusalém e ali surgiu o plano para que viesse também para a oração do Vaticano. Para ele foi um passo arriscado, porque podem jogar isso na cara dele, mas era preciso estreitar este gesto de humildade. Para nós é necessário porque não é concebível que os cristãos estejam divididos, é um pecado histórico que temos que reparar. Diante do avanço do ateísmo, qual é a sua opinião sobre as pessoas que acreditam que a ciência e a religião são excludentes? Houve um avanço do ateísmo na época mais existencial, talvez sartreana. Mas depois viu um avanço rumo a buscas espirituais, de encontro com Deus, de mil maneiras, não necessariamente as formas religiosas tradicionais. O enfrentamento entre fé e ciência teve seu auge no Iluminismo, mas que hoje não está tanto na moda, graças a Deus, porque nos demos conta da proximidade que há entre uma coisa e a outra. O Papa Bento XVI tem um bom magistério sobre a relação entre fé e ciência. Em linhas gerais, o mais atual é que os cientistas sejam muito respeitosos com a fé, e o cientista agnóstico ou ateu diga: “Não me atrevo a entrar nesse campo”. O senhor conheceu muitos chefes de Estado. Vieram muitos e é interessante a variedade. Cada qual tem sua personalidade. Chamou-me a atenção um fato comum aos políticos jovens, quer sejam de centro, de esquerda ou de direita. Talvez falem dos mesmos problemas, mas com uma nova música, e gosto disso, me dá esperança, porque a política é uma das formas mais elevadas de amor, da caridade. Por quê? Porque leva ao bem comum. E uma pessoa que, podendo fazê-lo, não se compromete na política com o bem comum, é egoísmo; ou que usa a política para o bem próprio, é corrupção. Há 15 anos, os bispos franceses escreveram uma carta pastoral intitulada “Réhabiliter la politique” [Reabilitar a política]. É um belíssimo texto que faz a gente se dar conta de todas essas coisas. Qual é a sua opinião sobre a renúncia de Bento XVI? O Papa Bento fez um gesto muito nobre. Abriu uma porta, criou uma instituição, a dos eventuais papas eméritos. Há 70 anos, não havia bispos eméritos. Hoje, há quantos? Bom, como vivemos mais tempo, chegamos a uma idade em que não podemos seguir adiante com as coisas. Eu farei o mesmo que ele, pedirei ao Senhor para me iluminar quando chegar o momento e me dizer o que tenho de fazer, e seguramente vai me dizer. Tem um quarto reservado em uma casa de repouso em Buenos Aires. Sim, em uma casa de padres idosos. Eu deixaria a Arquidiocese no final do ano passado e eu já havia apresentado a renúncia ao Papa Bento quando completei os 75 anos. Escolhi um quarto e disse: “quero morar aqui”. Trabalharia como padre, ajudando as paróquias. Esse seria o meu futuro antes de ser papa. Não vou lhe perguntar quem apóia na Copa do Mundo… Os brasileiros me pediram neutralidade (ri) e cumpro com minha palavra, porque o Brasil e a Argentina sempre são rivais. Como gostaria de ser recordado na história? Não pensei nisso, mas gosto quando alguém, recordando outra pessoa, diz: “Era um cara bom, fez o que pôde, não foi tão ruim”. Com isso me conformo.
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Fonte: Instituto Humanitas Unisinos/ Amai-vos |