O instrumento de suplício é símbolo de salvação!
Reflexões para a Mesa da Palavra – Liturgia da Missa
Festa da Exaltação da Santa Cruz
Disse Jesus a Nicodemos: “Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem. Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna. Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Jo 3, 13-17
Em um assalto o jovem foi covardemente assassinado. Uns dias depois, ao passar cabisbaixo pelo local do crime, seu irmão deparou com estranha visão. O cabo de um punhal aparecia no canto do bueiro à frente. Apanhou a arma, sem dúvidas que o instrumento causador da morte do mano. Enquanto caminhava, sentiu estranho e mórbido desejo. Por que não emoldurar a faca expondo-a na parede da sala? Obviamente que ninguém concordou com tal desatino e o punhal logo foi entregue à polícia.
Celebramos a festa da Exaltação da Santa Cruz. Há que se refletir, este é o convite que lhes faço, sobre o paradoxo desta expressão. O instrumento de suplício no qual o Salvador morreu, é o objeto da nossa celebração.
A cruz para aquele povo era a mais vil dentre as variadas formas de matar usadas. Era gente, há de se convir, bastante criativos nessa arte. Não será sem motivos que Paulo, uns tempos depois, perderá a cabeça. Como cidadão romano, por mais terrível que pudessem ser as acusações, jamais poderia ser “levantado no madeiro” mais aviltante. Sabedores dessa conjuntura compreenderemos melhor a conversa, contada por João, do Senhor com um líder judeu, Nicodemos.
Jesus, mais de uma vez, nos alerta para os “sinais dos tempos”. Reparava, sem dúvidas, nos sinais de crise em relação ao seu modo de proceder. Sentia estar chegando (perdoem o trocadilho) numa encruzilhada e dela, a menos que fugisse da missão, terminaria morto. Por conta disto já profetiza a Nicodemos o que previa para si.
Sim, sabemos que o evangelista registrará sua morte tempos depois do acontecido. Quando nos escreve a história ela já era motivo de reflexão fazia tempo entre os primeiros cristãos. Daí, motivados pelo desconforto dos judeus convertidos com a morte do Filho de Deus, em instrumento tão indigno, as comunidades sentiam a necessidade de enfatizar a profecia da cruz.
No Primeiro Testamento buscaram a inspiração para aquela ocorrência. Na Primeira Leitura vamos ver o povo hebreu no deserto reclamando e se voltando contra Deus. A fome, os perigos representados pelas serpentes, somados aos imensos sofrimentos daquela gente peregrinando, geraram saudades da escravidão. Daí a ordem de Deus a Moisés, que moldasse uma serpente de bronze para que os feridos, ao olhá-la, fossem curados.
Obviamente que se trata de linda metáfora. Não podemos cair na leitura fundamentalista das palavras de Deus. Cabe indagar então que serpentes eram essas a picar o povo? Sim, havia os animais peçonhentos, mas será que eram os que mais “matavam” os judeus? A dúvida, a descrença, a paralisia diante das dificuldades, a vontade de retornar ao comodismo de uma vida, sem sentido, como escravos… Será que não eram pecados assim aqueles que seriam “salvos” ao se mirar tal serpente de bronze?
Na segunda leitura, em seguida, Paulo nos falará em lindo hino, deste esvaziamento total de Deus se fazendo humano, um de nós. Como gente, se tornou sujeito às vicissitudes da humanidade, até mesmo a possibilidade da morte mais terrível e dolorosa daqueles tempos.
Há gente ainda que vê a Cruz como fatalismo. Como se Jesus teria mesmo que morrer nela, para nos salvar. Quem observa assim este mistério, passa a crer numa predestinação do Senhor a este suplício. Esquece-se de que quando a Trindade Santa envia o Filho à Terra, obviamente que sonhava ser Ele acolhido por nós. Um deus que raciocinasse diferente seria sádico, jamais seria o nosso Deus.
O Pai é todo bom, é Amor, João afirmará isto. Bondade e Amor jamais enviariam o Filho para o sacrifício. Nós, que não somos tão bons assim, levaríamos um filho para a morte? Lembremo-nos da cena de Abraão levando Isaac para entregar a Deus. Na cabeça daquele rude homem, estava a noção de que Deus se comprazia com o sangue dos filhos. Nega este envio confiante seria o mesmo que considerar que não temos liberdade. Meros fantoches em mãos superiores.
Que tal um pouco de sonho para entendermos melhor este ponto? Com os olhos da imaginação, contemplemos a seguinte cena: A humanidade encantada com as palavras de Jesus, aceita segui-lo. O mundo então, a partir da sua periferia, a sofrida Palestina, vai se transformando, até que haja verdadeira paz, a justiça aconteça e seja plena a presença amorosa de Deus. O pecado não habitaria entre nós e (outra metáfora) o “lobo pastaria com o cordeiro”.
É da condição humana a morte. Algum dia Jesus iria morrer, mas então o Pai não teria ressuscitado um homem de trinta e poucos anos. Provavelmente tal mistério, gosto de imaginar, teria se dado num sábio velhinho partindo para a gloria do Pai, já bem avançado de idade. Quem sabe esta imagem que muitos possuem de Deus, um idoso de longas barbas, não seria esta do Filho próximo à morte?
A exaltação da cruz se dá não por conta de ela haver sido instrumento do suplício de Jesus. Ela se torna santa porque se faz símbolo de salvação, na medida em que acolheu no “seu corpo” aquele que, como participantes da humanidade, também nós fizemos morrer.
Perguntas para reflexão:
– O que significa a cruz para mim?
– De que “serpentes” necessito ser curado?
– Sinto a cruz como fatalidade, ou creio pudesse ter sido de forma menos traumática a salvação?
Fernando Cyrino
www.fernandocyrino.com