Victor Hugo em versão carioca
A história de Valjean, no entanto, cruza-se com muitas outras, inclusive com a de crianças, como o pequeno Gavroche, que vive nos esgotos de Paris, juntamente com outros moradores de rua. A vida nos esgotos é suja e dura, mas isso não impede que o pequeno Gavroche participe da revolução libertária que acontece naquele momento em sua cidade e morra como um pequeno herói.
O Rio de Janeiro teve a oportunidade de presenciar outro dia, presente na grande imprensa e na mídia de modo geral, uma versão feminina mas igualmente pequena e indefesa de Gavroche. Em dia de intenso calor, Maria, de cinco anos, tranquilamente banhava-se em um bueiro no centro da cidade. Estranha piscina essa que Maria encontrou para refrescar-se. Certamente não primava pela limpeza e pelas condições de sanidade.
Nada disso desanimou a menina que não aguentava mais o calor que sentia ao lado do pai, enquanto esperava a avó, com quem vive e que fora resolver alguns problemas práticos no centro da cidade. Ao ser flagrada pela câmera do fotógrafo e ter sua foto publicada em grande jornal, multiplicada pelas redes sociais, Maria saiu da invisibilidade que sua condição lhe impunha desde que nascera. Nunca teve casa, nem pai e mãe presentes. Criada pela avó em precária moradia na região do Grande Rio, não vai à escola, mas sim a uma creche, quando não se encontra pelas ruas, assim como mais de 5000 crianças em idade escolar em nossa cidade.
Agora a pequena Maria é procurada por assistentes sociais, educadores de rua, agentes da prefeitura, do Conselho Tutelar etc. Sua visibilidade repentina a surpreende um pouco e a leva a formular desejos que até então lhe eram inacessíveis. Deseja um tablet e uma bicicleta, e pela primeira vez espera um Natal menos magro do que têm sido os seus ao longo de sua curta vida.
Grande movimentação se forma ao redor da pequena Gavroche carioca. Todos os órgãos governamentais querem assisti-la, faze-la passar na frente da fila onde se encontra há anos no Programa “Minha casa minha vida”, esperando finalmente um lugar decente para morar. Maria e sua heroica avó, Dona Raimunda, já foram até visitar o apartamento que deverá ser delas. E o que mais encantou a menina foi a água. Em resposta à repórter que a entrevistava, disse, deslumbrada: “Tem água na pia, na privada, no chuveiro. Lá em casa não tem isso.”
Bueiros da cidade e as fontes que enfeitam os parques e praças continuarão servindo de refresco para várias outras crianças que deambulam pelas ruas em dias de intenso calor. Devem enfrentar problemas diferentes esses Gavroches cariocas, pois em Paris, nos esgotos onde dormiam os pobres, fazia muito frio. E o grande desafio era se protegerem, cobrindo-se com farrapos e amontoando-se uns sobre os outros.
Aqui trata-se de encontrar um lugar onde haja água, não importa se com ou sem dengue, com ou sem leptospirose, com ou sem fecaloma devido à sujeira que ali habita. Quando o sol leva os termômetros a quarenta graus, a solução é o bueiro, o chafariz, a fonte, o balde de água parada e cheia de mosquitos, ou a água do próprio esgoto que corre a céu aberto.
Parece que tudo isso Maria vai deixar para trás quando sua avó estiver de posse da chave do apartamento onde vão morar. Poderá – sempre que houver água, é claro – tomar banho em seu chuveiro, com água encanada e razoavelmente limpa.
Porém, outras crianças continuarão tendo que recorrer a bueiros ou poças de água, pois a casa delas permanecerá sendo a rua, como a do pequeno Gavroche eram os esgotos de Paris.
Neste Advento, enquanto esperamos a chegada do Menino, que teve de nascer num estábulo porque não havia lugar para recebê-lo em nenhum albergue, deixemos que a visão de Maria tomando banho no bueiro nos inspire sobre o que fazer para que cenas como a que ela protagonizou se repitam cada vez menos, indicando que a cidade se torna mais habitável e mais humana.
Autor: Maria Clara Bingemer
Fonte: Amai- vos
Foto: Marcelo Piu