Como acolher a riqueza da Palavra de Deus

Publicado em 20/02/2015 | Categoria: Notícias |


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Confira o texto redigido pelo papa Francisco em 1984.

Por Jorge Mario Bergoglio*

 

Na sociedade moderna, pode-se notar uma crescente pluralização da vida: especialização, divisão do trabalho, diversidade de métodos. A afluência de métodos teológicos diversos, do pluralismo interno às disciplinas particulares, dos pressupostos históricos e hermenêuticos do contexto sociocultural configura, na teologia, o fenômeno do pluralismo, que não só permite muitas e diversas sínteses, mas também sugere, e com frequência, uma tentação de caráter sincrético: fazem-se conviver e põem-se de acordo conhecimentos e postulados que derivam de âmbitos diversos e até mesmo contrários. 

Sobre essa base, põe-se o problema de como se pode conservar a necessária unidade de confissão da fé, ao lado de um pluralismo cultivado com tanta profusão. A solução desse problema também está exposta a resultados inadequados. De um lado, há o erro de querer reduzir tudo a um denominador comum, o que, no fundo, implica que a pluralidade seja considerada como uma realidade negativa. 

Nesse caso, o primado absoluto das formas de confissão da fé em relação à missão constante da sua tradução seria tal que geraria um espírito de reação, de conformismo, de gueto, de integrismo violento, de modo que a teologia renunciaria à sua missão criativa. 

Se se seguisse essa opção, seria suprimida a necessária diferença entre unidade de confissão e legítima diversidade de explicação teológica; resultaria daí uma unidade morta, artificial, opressora e paralisante em relação ao impulso missionário. As ideias tomam o lugar das pessoas, e abre-se o caminho para a ideologia.

De outro lado, o pluralismo não parece tão inofensivo e neutro como alguns o consideram à primeira vista. De fato, se chegasse a não se preocupar com a unidade da fé, isso significaria a renúncia à verdade, o contentamento com perspectivas parciais e unilaterais. Apelar à legitimidade do pluralismo como uma reivindicação constante poderia equivaler simplesmente a um fácil expediente: quando, de fato, não subsiste nenhuma relação com o estranho, acomodamo-nos no nosso próprio mundo e nos próprios interesses particulares, imunizamo-nos, isolamo-nos e evitamos a concorrência. 

O pluralismo não é menos nefasto quando esquece os postulados científicos e age, ou reage, movido exclusivamente por interesses sociais de caráter político ou de crítica sistemática em relação à Igreja. A partir dessa posição, pode derivar uma atitude desenfreada e caprichosa, uma tirania de forças que aspira apenas a impor o próprio ponto de vista. Cai-se no encerramento e na polarização teológica. 

Resta aberta, portanto, a questão dos percursos de um pluralismo adequado, em que a fé não caia nas armadilhas de um pluralismo desmedido, nem de um vulgar conformismo. Qual é, portanto, a forma cristã da unidade? […] 

Von Balthasar elabora dois critérios nos quais ele centrará a sua reflexão sobre a possibilidade de um pluralismo eclesial: o critério de proximidade e o critério de maximalidade. O critério de proximidade comporta que qualquer mistério permaneça como tal mesmo depois de ter sido revelado. O mistério não é “controlável”, como gostaria a fantasia de todas as gnoses que – ansiosas por controlá-lo e, por outro lado, tendo que manter nesse controle algum aspecto mistérico – transpõem o mistério ao controle dos ritos de iniciação. 

A mesma coisa acontece no plano humano da compreensão do próximo: “O entendimento interpessoal, na sua dialética entre com-preender e deixar-livre […], sem dúvida, é o lugar privilegiado para a compreensão daquela que pode ser a revelação divina em Jesus Cristo. […] A compreensão da fé conhece inúmeros graus de profundidade, o que não quer dizer que o mistério possa ser dissolvido sucessivamente e mudado em conceitos misteriosos. A partir de uma ilusão semelhante, preservaremos a nossa própria relação interpessoal: o conhecimento da esfera pessoal de outro homem nos introduz mais profundamente nos espaços incondicionais da sua liberdade; mas, em vez de diminuir, ela cresce em nós, e nós crescemos dentro dela”. 

Como qualquer proximidade é uma aproximação daquilo que me transcende, é ela mesma que libera a capacidade interpelante de qualquer texto. Não se trata mais da contraposição “ou letra ou espírito”, mas de uma abertura do coração que chega a descobrir o Espírito que está em cada texto revelado. […] 

No Evangelho, a proximidade por excelência, que é a do Deus encarnado, se expressa no gênero da parábola: o bom samaritano. Nessa parábola, capta-se a atitude de “passar ao largo” […]. Isso torna possível confundir uma pessoa que invoca no seu estado de necessidade com um embaraço qualquer: uma confusão construída pela suficiência.

 

Capta-se aí também a outra abordagem, a daquele que “se aproxima” movido pela misericórdia, “faz-se próximo”; porque qualquer miséria tem algo de pudico e se esconde, e, para compreendê-la, é preciso “fazer-se próximo” a ela. 

A proximidade adquire a sua plenitude na synkatabasis do Verbo, que se faz próximo. Então, a última palavra de Deus, o Verbo encarnado, já transcende o âmbito da revelação e da doutrinação (pressupõe-no) e se explicita em participação e comunhão. 

Isso, mais do que palavra e ação, significa sofrimento e, portanto, o ”abandono de Deus” até a descida aos infernos. No critério de proximidade, tornado eminente em Jesus Cristo, há a realidade de Deus expressada sub contrario; e isso toca todos os órgãos e os gestos da Palavra divina, toda a Igreja, incluindo a reflexão teológica. 

A proximidade, conduzida a esse grau que se expressa em Cristo, é instituição, é lógica teológica, mas não panteísmo difuso. 

O outro critério utilizado por von Balthasar, a maximalidade, nasce daí e constitui um critério universal e suficiente nos limites do qual o pluralismo teológico é admissível. […] 

A maximalidade do amor de Deus deve ser aceita, mas da forma como se encontra em Jesus Cristo: na pobreza e na humilhação desejadas por Deus, que o homem não pode rejeitar com o pretexto de que se retratava a majestade divina de outro modo, isto é, como que colocada exclusivamente no céu. Nesse sentido, podemos dizer que o critério de maximalidade pode ser entendido como a eminente explicitação do critério de proximidade. 

Para dizê-lo de forma negativa, com as palavras do próprio von Balthasar, “todas as vezes que, na explicação do mistério, parece que um aspecto resplandece de modo verdadeiramente racional e que, portanto, o caráter mistérico (que indica a “radical diversidade” de Deus, a Sua divindade, que o distingue de tudo e de todos) foi parcialmente rejeitado, para dar livre expressão para uma visão terrena que se pode abranger com o olho humano, ali há heresia, ou, ao menos, se ultrapassaram os limites da legítima pluralidade teológica”. 

Então, o mistério foi domesticado, foi afastado, foi minimizado com um ato que não é intellectus fidei, mas intellectus rationis humanae. Então, não há mais dogma ou reflexão teológica, mas ideia e ideologia. 

Como dizíamos acima, de fato, nesse tipo de ideologias moldadas através da categorização do mistério, existe uma dimensão que se torna uma espécie de caricatura do mistério, uma dimensão mistérica que o aproxima de uma gnose. Resta em aberto a problemática da relação ideologia-gnose, que toca a questão do pluralismo. Ela torna possível definir cada mau pluralismo teológico como um monismo gnóstico com pretensões programáticas. A esse respeito, os fundamentalismos atuais podem ser citados como expoentes do gênero. 

O critério de maximalidade, como expressão mais completa do critério de proximidade, tornará possível um real pluralismo teológico: de fato, ele exige um máximo de unidade no corpo de Cristo que é a Igreja, junto com um máximo de diferença entre os seus membros. O sinal será a unanimidade na expressão plural. 

Uma má abordagem ao pluralismo significa o contrário dessa verdade. Implica que não somos capazes de suportar a unidade superior, da qual – através da sua missão e da sua graça – somos apenas um fragmento, de modo que a unidade é deslocada do todo à parte, e assim caímos nas ideologias próprias do homem unidimensional, que se eleva a “senhor” da verdade. 

A unidade superior implica que se suportem tensões e conflitos, que, segundo von Balthasar, podem se mostrar como dissonâncias, que, no entanto, nunca devem ser confundidas com a cacofonia do monismo gnóstico. Essas tensões são o “lugar bélico” do Evangelho, e a unidade superior a que aspiramos – unidade em que se resolvem de maneira qualitativamente diferente as tensões – é aquela que nos constitui como criaturas, como servos; é aquela que nos dá uma referência à nossa identidade. Em última instância, ela é pertencimento a um corpo ao qual somos chamados e nos transcende e nos consolida como crentes. […] 

O autêntico pluralismo deve estar consciente de ser parte e nunca o todo. O teólogo deve fazer todo o possível para que a sua verdade encontre lugar no espaço da única Igreja. Por outro lado, a comunhão da Igreja só pode ser garantida se ela se expressa claramente na dinâmica concreta da reflexão teológica. E aqui entram em jogo três elementos decisivos: a constante referência à Sagrada Escritura como fundamento; o conhecimento das grandes tradições cristãs; a compreensão atual do homem e do mundo. […] 

A tensão entre pluralidade e unidade não só não pode ser resolvida acentuando uma das partes e deslocando em direção a ela o polo de síntese, mas também não pode ser resolvida eclesialmente, tentando uma espécie de equilíbrio entre as autonomias das parcialidades, cuja formalidade unitiva resultaria em sincretismo. 

Nesse caso, se obteria apenas uma caricatura do verdadeiro pluralismo, e as opções inspiradas no contexto de tal atitude sincretista poderiam ser úteis apenas para o “momento”, mas não para o “tempo”, porque lhes falta a capacidade de contribuir com harmonia para qualquer processo e para qualquer crescimento. 

E, concretamente, falta a tais soluções harmonia cristã, já que, fazendo sincretismo nesse plano, obtém-se um compromisso de parcialidades autônomas segunda um equilíbrio concordado, mas não se assume, nem se expressa, aquela harmonia cristã que só se alcança passando pela cruz. 

Sobrevive uma espécie de assíntoto que leva a se tender, sem alcançá-la, a uma federação de autonomias que pretende simbolizar a unidade. A unidade de confissão nos convida a não diluir a riqueza original da palavra de Deus nas suas diferenças e a rejeitar a pretensão de fazer nós mesmos as sínteses perfeitas e controláveis. 

Participar da unidade de confissão implica aceitar pertencer e, portanto, assumir todas as consequências do pertencimento que esse tipo de unidade envolve, em nós, do ponto de vista eclesial. É toda a Igreja que possui toda a verdade de fé, e só é possível participar dessa totalidade na medida em que o pertencimento eclesial é total. 

Corriere della Sera, 19-02-2015.

*A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Fonte: Dom Total



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