Sínodo: a tentativa de um olhar pastoral sobre as famílias.
Entrevista especial com Cesar Kuzma
“Não se quer mudar a doutrina, se quer sim ampliar a maneira como a Igreja a compreende, vendo a verdade revelada além do que se tem à frente. A intenção do Sínodo quer olhar o coração e não a lei. Com isso, propõe-se um olhar pastoral e não meramente doutrinário”, diz o teólogo.
Ao comentar os dois questionários do Sínodo Extraordinário sobre a Família, o teólogo afirma que o primeiro, enviado em 2013, “foi seguramente mais direto e ousado em suas propostas. Ao mesmo tempo em que aludia uma determinada realidade, ele confrontava a Igreja em sua postura e já impunha uma tensão pastoral. Projetavam-se ali novas questões, novas leituras e uma abertura a alguns casos, também em revisão de pontos ainda polêmicos da relação da Igreja — enquanto instituição — com as famílias”.
O segundo, pontua, apresenta perguntas mais longas, com pressupostos “já definidos” e “impede um diálogo mais ousado e livre. (…) Como todo questionário, as perguntas já induzem uma resposta ou ao menos uma intenção”.
De modo geral os questionários apresentam uma “preocupação” com a realidade das famílias, “mas já se aponta para a responsabilidade destas no campo da missão específica, sobre a transmissão da fé e no assegurar da lei natural e da transmissão da vida”. Para o teólogo, as três partes do questionário, denominadas “o escutar, o olhar e o confrontar”, podem ser recolocadas e provocadas do seguinte modo, para “dar outro tom às respostas”: “O que e a quem escutar? O que e a quem olhar? O que e a quem confrontar?”.
Na entrevista a seguir, Kuzma argumenta a favor de algumas mudanças, como a permissão da comunhão para casais separados/divorciados e/ou recasados ou em segunda união, sugere novas discussões sobre a situação dos homoafetivos e alterações nos processos de nulidade matrimonial e segundo matrimônio. Entre os pontos abordados no Sínodo, o teólogo afirma que o “questionário não avançou nas discussões que dizem respeito à Encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, que toca em questões sérias e bem próximas à realidade das famílias e nas questões da sexualidade e do planejamento familiar”.
Cesar Kuzma é teólogo, casado, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atualmente realiza pesquisas em Teologia sistemática e pastoral e leciona na PUC-Rio.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o segundo questionário enviado pelo Vaticano por ocasião do “Sínodo dos Bispos: os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”, foi recebido pelas dioceses brasileiras e pelos leigos? Qual foi a reação dos leigos frente ao questionário?
Cesar Kuzma – Primeiramente, precisamos destacar a qualidade do processo que está sendo proposto pelo Papa Francisco, que é novo, para que na sequência possamos falar sobre o seu conteúdo. Vejamos. A grande novidade desta discussão sinodal sobre a família é que ela trata de um tema bem presente e bem próximo à vida eclesial e social das pessoas, sobretudo dos leigos, o que por si só já traz e gera uma grande expectativa.
Falar em família, hoje, implica muitas coisas, novas formas, novas abordagens, novas configurações, inclusões, ressentimentos, culpas, dores e alegrias, e por aí vai. As inúmeras situações que avançam sobre as famílias na atualidade e as novas formas com que se solidificam merecem atenção, e isso pelo simples fato de que esta discussão trata de pessoas, toca na sua dignidade, em seus direitos e em sua vocação última, que é a realização humana, plena.
Destaca-se, também, que estas pessoas, a maioria delas, não estão fora, mas dentro de nossas comunidades, são pessoas próximas a nós, logo as suas dores são também as nossas. É preciso ser sensível e não meramente doutrinal. Tais pessoas se aproximam de nossas comunidades em busca de respostas, de sentido e de alimento. Não podemos ignorar ou fechar os olhos e achar que elas não existem, ou pior, que estão totalmente erradas. Seria incoerente. Esta realidade está aí, está bem na nossa frente; está em nossas casas, fazem parte dela os nossos amigos e irmãos.
É aí que entra a intenção dos questionários do Sínodo, pois ouvir essas pessoas e suas realidades se tornou uma tarefa fundamental, e, além disso, descer até o lugar onde se encontram é um passo necessário para se comprometer, e faz-se isso com o olhar da ternura, com um sentimento gerado por Cristo e que nos aponta ao concreto do seu Reino: a vida de todos.
Sendo assim, o segundo questionário do Sínodo, como também o primeiro, teve esta intenção de ouvir, de saber a realidade, de dar voz às famílias e às comunidades, com a novidade que coloca as famílias no processo da evangelização, como responsáveis no testemunho. O questionário foi disponibilizado em várias instâncias e houve um pronunciamento da CNBB em torno dele, garantindo a sua legitimidade e importância. Nos lugares aonde ele chegou, por certo, encontrou posturas e reações, em várias frentes, o que é natural e importante para o que se quer. Enfatizo os “lugares aonde ele chegou” porque sabemos que ele não chegou a todos os lugares, infelizmente. Mas aí entram questões de comunicações e estruturas eclesiais, também de vontades e interesses.
“O primeiro questionário, que entendo ser melhor e mais proativo, perguntava sobre as novas realidades das famílias de hoje; o segundo fala da família na ação evangelizadora da Igreja” |
IHU On-Line – Quais as diferenças do segundo questionário em relação ao primeiro, recebido em 2013?
Cesar Kuzma – Sim, há diferenças, e o primeiro questionário, enviado em 2013, foi seguramente mais direto e ousado em suas propostas. Ao mesmo tempo em que aludia uma determinada realidade, ele confrontava a Igreja em sua postura e já impunha uma tensão pastoral. Projetavam-se ali novas questões, novas leituras e uma abertura a alguns casos, também em revisão de pontos ainda polêmicos da relação da Igreja — enquanto instituição — com as famílias — membros do Povo de Deus, Igreja. Não se pretendia com isso mudar a doutrina, mas buscava-se ter um olhar mais pastoral, de acolhida, no amor e no respeito por todos.
O segundo questionário tem uma continuação e a intenção se faz positiva, mas o descrever longo das perguntas e ao colocar alguns pressupostos como já definidos, às vezes já fechados, impede um diálogo mais ousado e livre. No entanto, ele não intimida e pode ser uma boa ferramenta de ação pastoral e de novos entendimentos.
A Igreja quer dialogar e quer ouvir a sua base. Valem-se aqui as palavras de Francisco na sessão de 2014, para que haja liberdade no dizer e no pedir, o que vai requerer uma Igreja madura, e o resultado dessas discussões vai nos mostrar até que ponto ela está ou em que sentido ainda precisa acolher mais. É nesta liberdade que eu falo e esta frase do Papa me sustenta e me garante. Outro ponto que deve ser elucidado é que um questionário não anula o outro, mas se complementam e se exigem mutuamente.
O primeiro questionário, que entendo ser melhor e mais proativo, perguntava sobre as novas realidades das famílias de hoje; o segundo fala da família na ação evangelizadora da Igreja. Ou seja, uma realidade implica obrigatoriamente a outra, elas se exigem. Se a Igreja espera algo das famílias, estas também esperam algo da Igreja. É no enfrentamento das realidades presentes e difíceis de cada família que se pode conceber a vocação e a missão da mesma, uma vez que cada família, por seus membros, é chamada à vocação e missão na realidade onde está e é ali que ela vive a sua fé e busca o seu caminho de santidade, conforme afirmou o Vaticano II sobre os Leigos (LG 31b; 41; AA 11).
IHU On-Line – De que maneira os leigos se organizaram para responder aos questionários?
Cesar Kuzma – Isso é algo muito variado e não poderíamos contemplar o todo. Mas as respostas poderiam ser feitas e conduzidas pelas dioceses, pelas paróquias e demais comunidades. Assim como o primeiro questionário, as respostas também poderiam ser feitas pelas diversas pastorais e movimentos, e também individualmente. É importante dizer que algumas realidades se equivalem em várias partes do mundo e em vários movimentos e pastorais; contudo, existem situações culturais, que tocam as famílias e o seu trabalho pastoral, em que estas situações divergem bastante. Isso vai levar os leitores do Sínodo a uma atenção sensível e acolhedora. O Sínodo tem ainda um olhar muito ocidental, mas as realidades e os contextos familiares vividos na Ásia e na África têm alguns teores distintos e por certo têm outros problemas. Espero que tenham tempo e que possam ser contemplados também.
“O Papa Francisco quer uma Igreja com todos e que ninguém deve ficar de fora” |
IHU On-Line – A partir das perguntas, é possível vislumbrar quais são as preocupações gerais da Igreja em relação às famílias cristãs?
Cesar Kuzma – Como todo questionário, as perguntas já induzem uma resposta ou ao menos uma intenção. Mantém-se a preocupação sobre a realidade das famílias, mas já se aponta para a responsabilidade destas no campo da missão específica, sobre a transmissão da fé e no assegurar da lei natural e da transmissão da vida. Fala-se também do cuidado e da preparação dos agentes de pastoral, da comunidade e dos cônjuges. O questionário se dividiu em três partes: o escutar, o olhar e o confrontar.
Poderíamos colocar aí uma provocação: O que e a quem escutar? O que e a quem olhar? O que e a quem confrontar? Isso poderia dar outro tom às respostas. A questão das famílias feridas (divorciados, casais em segunda união e dos homoafetivos) também foi tocada, mas precisamos esperar e ver de que maneira serão lidas as respostas e quais intenções vão se colocar em respeito a elas. Aí está algo que foi provocado no primeiro questionário e que o sucesso deste segundo deve levar em conta, pois é algo próximo e sério.
Honestamente, achei uma pena que o questionário não avançou nas discussões que dizem respeito à Encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, que toca em questões sérias e bem próximas à realidade das famílias e nas questões da sexualidade e do planejamento familiar. O segundo questionário já a pressupõe e não a discute, achei ruim, pois seria importante e necessário fazer essa discussão. Por estarmos próximos aos 50 anos da sua publicação e sabendo que muito já se avançou no campo da medicina, da reprodução humana assistida e também na teologia moral, abordá-la e, sobretudo, debatê-la, seria uma riqueza, pois ela não encerrou a discussão; é algo que toca às famílias e que leva muitas a viverem na culpa ou na indiferença, e isso não é bom. É preciso resgatar o diálogo que se propôs com o Vaticano II e a responsabilidade da família no que tange aos filhos, conforme assegurou a Gaudium et Spes (GS 50).
IHU On-Line – Que leitura faz acerca de quais são as intenções do Sínodo sobre a Família?
Cesar Kuzma – As intenções são boas, novas e positivas. Trazem um olhar pastoral, na ternura, como gosto de dizer. Não se quer mudar a doutrina, se quer sim ampliar a maneira como a Igreja a compreende, vendo a verdade revelada além do que se tem à frente. A intenção do Sínodo quer olhar o coração e não a lei. Com isso, propõe-se um olhar pastoral e não meramente doutrinário. Eu diria até, um olhar pastoral e não doutrinário. A doutrina entra quando se chega a um entrave e ela se faz então necessária.
Percebemos, desde o início do seu Pontificado, que o Papa Francisco quer uma Igreja com todos e que ninguém deve ficar de fora. A Igreja não é uma alfândega, ele diz. Ele reforça e evidencia o amor misericordioso, um amor que desprende e que se desloca para atingir o outro, para tocá-lo e resgatá-lo no amor. Muitas das nossas famílias estão nesta situação, estão afastadas, caladas, refugiadas, excluídas até da própria Igreja. Como isso pode ser cristão? Faz-se necessário uma nova postura, na acolhida, no entendimento, no serviço e no amor. Penso que a intenção primeira do Sínodo passa por aí, resta-nos saber se ele vai atender esta demanda, uma vez que gerou discussões e expectativas, ou se vai frustrar também. Por ora, ainda prefiro manter a esperança!
IHU On-Line – Quais são os questionamentos/pontos do Sínodo que geram maior discussão? Por quê?
Cesar Kuzma – Sem dúvida alguma, são aqueles que tocam a estrutura de família ou suas condições difíceis e que caem em moralismos e atitudes rígidas. É quando fala ou questiona a postura da Igreja frente aos que estão separados/divorciados ou que contraíram novo matrimônio; entra aí a questão da Eucaristia, o que se percebe no Papa uma voz favorável, também o mesmo nos discursos do Cardeal Kasper e do Arcebispo Bruno Forte, como também em outros. Tem ainda a questão dos homoafetivos e a sua inclusão na Igreja, o que vai muito além da questão do casamento em si. Ou seja, tocar nestas realidades vai exigir uma nova postura pastoral, um desprendimento em relação ao próximo, vai exigir um novo entendimento da doutrina, o que não significa mudá-la, mas a busca de uma nova percepção.
A pergunta nº 7 do segundo questionário traz o seguinte enunciado no seu início: “O olhar fixo em Cristo abre novas possibilidades”. Sinceramente, gostaria que isso acontecesse e que este fosse o norte do Sínodo, pois o olhar atento a Cristo e suas opções e inclusões, teceria um bom fundamento. Resta à Igreja (todos nós) ter o mesmo sentimento de Cristo Jesus (cf. Fl 2,5), isto é, precisamos ter uma atitude de esvaziamento, uma kénosis. No fundo, todas estas novas situações obrigam a Igreja a uma nova postura de acolhimento, desprendida de leis e normas, mas atenta ao Evangelho e a postura de Jesus e de seu Reino. As exigências do ser cristão não podem ser obstáculos para a acolhida, pois a acolhida, a todos, decorre da gratuidade do próprio Reino, que quer a todos e se destina a todos. Uma Igreja de portas abertas e que seja mãe, como define Francisco, deve atentar-se a isso.
“Sempre há espaço para a graça, e a graça é maior do que qualquer culpa e do que qualquer pecado” |
IHU On-Line – Por quais razões considera que a Igreja deve permitir a Eucaristia a casais em segunda união e/ou separados/divorciados que contraíram um novo casamento? Quais são as fundamentações teológicas para essa mudança?
Cesar Kuzma – A Igreja afirma e sustenta (e isso é correto) que a Eucaristia é o ponto maior da nossa vivência eclesial. Ela é o nosso sustento, é o nosso alimento. É por ela que fazemos a memória do Cristo, entramos em comunhão com ele e seguimos os seus passos, fortalecidos com este sacramento, cuja riqueza de seu conteúdo é inesgotável. Negar isso a membros da comunidade é negar o alimento da caminhada e afastá-los do convívio fraternal que os dignifica e os santifica. Eles deixam de tomar parte em algo que é fundamental, então, é como se não fossem mais parte do corpo, estão excluídos. E, neste caso, falamos do acesso à Eucaristia a pessoas que estão, sim, em situações delicadas e machucadas, pessoas que fracassaram em seus matrimônios, muitas vezes sem culpa, mas que ao mesmo tempo são autênticos na fé, são perseverantes na caminhada, firmes na esperança e cheios de amor a Cristo e à Igreja. Sempre há espaço para a graça, e a graça é maior do que qualquer culpa e do que qualquer pecado, só ela, que vem do amor de Deus, é que pode justificar e tornar pleno tudo o que existe.
Na Evangelii Gaudium o Papa Francisco foi muito enfático e firme ao dizer que a Eucaristia não é um prêmio para pessoas santas, mas um remédio necessário e generoso para todas as pessoas (EG 47); e fundamenta isso em Santo Ambrósio e em São Cirilo de Alexandria, para mostrar que tal intenção faz parte da tradição da Igreja. Faz-se necessário entender também o que se concebe como sacramento, o seu aspecto de sinal-realizador e o seu ponto simbólico, que vai além do que se vê, mas que se crê e projeta-se na fé. Diante disso, o Cardeal Kasper questionou os bispos em sua palestra, no Sínodo: “Se eles podem comungar espiritualmente, por qual razão não podem também comungar sacramentalmente”? Ora, pergunto eu, não estamos falando do mesmo Cristo e não é o mesmo que se faz presente e que nos dignifica e nos santifica, em graça, dando-nos vida, e vida plena? As razões do que aconteceu com cada pessoa e família superam o nosso juízo moral e diante disso não podemos julgar, mas sim exercer a dinâmica da reconciliação, garantida por este sacramento. Aí eu entendo a Eucaristia como sacramento do amor. A Eucaristia é uma fonte inesgotável e não pode ser presa apenas em nosso entendimento, uma vez que ela nos traz Cristo e nos liberta. Se ela nos oferece a graça e a graça é salvífica, ela nos torna plenos e dignos de sua presença e de sua acolhida. Será que não é este o sentido da palavra Eucaristia? O evento-Cristo, que fazemos a memória e celebramos a sua presença sacramental, não é ele mesmo um evento que age além de nós mesmos e de nosso pecado, onde a graça de um Deus que é amor se manifesta e nos torna plenos e dignos de sua presença? E então? Devemos levar isso em conta, e seriamente. A Eucaristia é um mistério que se crê, que se celebra e que se vive, conforme afirmou Bento XVI na Sacramentum Caritatis. É importante também enfatizar a relação de cada um com Deus, sua responsabilidade e liberdade, seu espaço e sua caminhada.
Num aspecto pessoal, a voz da consciência, livre de qualquer culpa, deve falar também e deve trazer o discernimento. Eu não penso, como se diz na Familiaris Consortio, de João Paulo II, que um acesso dessas pessoas à Eucaristia traga um escândalo e um mau exemplo às demais pessoas. Acho que não, até mesmo porque tal prática já existe em várias comunidades e, quando essas, maduras na caminhada, exercem a sua função comunitária, dispostas a acolher e a perdoar, dispostas a amar, tal atitude não escandaliza, ao contrário, enobrece, restaura e plenifica.
IHU On-Line – Que ganhos esses casais teriam se a comunhão fosse permitida?
Cesar Kuzma – O ganho maior é a inclusão. Eles vão se sentir aceitos, tomarão parte, estarão livres de culpa e estarão mais livres para servir e edificarão a si mesmos, a Igreja e também o mundo, onde devem ser luz e fermento, sal da terra. Esta é a missão de cada família. Por essa razão, eu acredito que tal atitude de mudança seja fundamental para o que se quer com as famílias no aspecto de vocação e missão. Uma Igreja que é pastora e mãe deve acolher as ovelhas e curar as feridas.
A exclusão gera morte e a Igreja deve favorecer a vida, sempre, e a todos. Isso não seria uma banalização do sacramento, pois estaria sendo colocada a consciência de cada fiel e a maturidade da Igreja que acolhe e que traz a reconciliação. É esta Igreja viva que celebra o sacramento. Veja bem, o fundamento deste sacramento está na união de Cristo com a Igreja, no amor que este tem por nós, por sua entrega total, por sua doação.
Esta intenção deve se reproduzir entre o casal, no amor, na entrega, na doação total. Contudo, existe um limite muito grande entre a forma como Deus nos ama e a maneira como amamos. Somos humanos, nós somos fracos e por vezes erramos, por vezes pecamos e por vezes caímos. A experiência que a nossa fé traz é que diante da nossa fraqueza, do nosso erro e do nosso pecado, Deus se faz presente. Ele nos edifica e nos regenera no amor, torna-nos livres e dignos de sua presença, fortalece-nos e abre diante de nós uma nova realidade, pois o Evangelho sempre renova, sempre aponta para o novo. A Igreja deve permitir esta experiência e aí está o ganho.
“Na Evangelii Gaudium o Papa Francisco foi muito enfático e firme ao dizer que a Eucaristia não é um prêmio para pessoas santas, mas um remédio necessário e generoso para todas as pessoas” |
IHU On-Line – A problemática da família ainda é valorizada nas discussões da Igreja brasileira? Por onde perpassa esse debate?
Cesar Kuzma – Acho que a Igreja do Brasil tem favorecido a discussão sobre a família em várias frentes, em várias pastorais e movimentos e há sinais de uma caminhada promissora de acolhida. Por certo, há locais e locais, frentes e frentes. Temos comunidades onde o exercício de uma fé madura que acolhe se faz presente e os resultados são positivos. Mas não podemos ignorar que temos grupos que se fecham. Notamos também que a presidência da CNBB, a anterior e esta, tem-se mostrado favorável e tem tomado posições. Nem sempre isso agrada a todos, mas a discussão já é um caminho, é uma prova que as realidades existem e devem ser atendidas, devem ser ouvidas.
IHU On-Line – Que análise faz do Relatório do Sínodo dos Bispos sobre a Família, divulgado no ano passado?
Cesar Kuzma – O relatório apresenta um retrato da caminhada até o momento, mas ainda sem definições e sem grandes respostas aos problemas mais conflitivos, que envolvem tanto a questão da Eucaristia a casais separados/divorciados e/ou recasados ou em segunda união, mas também a questão dos homoafetivos e aspectos que tratam dos processos de nulidade matrimonial e/ou até segundo matrimônio, que poderiam ser deixados mais nas bases, numa esfera mais comunitária. Essas questões voltarão à discussão e deveremos esperar o caminhar da Igreja neste ano que está passando. Vimos que as discussões no Sínodo foram calorosas e até conflitantes em alguns momentos, isso apenas reforça a importância do tema e a sensibilidade com que se deve tocá-lo.
A ideia de Francisco é reforçar o sentimento de ternura, da misericórdia, na acolhida e na pastoral. Isso ficou claro em seus pronunciamentos e, seguramente, vai trazer um esforço para um novo entendimento da doutrina, o que não significa anulá-la, mas percebê-la de modo mais amplo, com olhar atento a Jesus e a sua práxis de Reino. Por ora, o balanço que fazemos é positivo, até porque o Papa tem deixado liberdade no falar e no pensar, então, este é o momento e para isso servem as discussões e é desta forma que a Igreja caminha. O relatório não é o fim de um processo, mas um retrato e é o ponto de partida para o encontro deste ano. E quando chegar a hora de tocar na vocação e missão da família nos dias de hoje, as questões levantadas e ainda não fechadas no sínodo anterior precisarão ser retomadas a altura, com respostas maduras e convincentes. O Sínodo despertou esperança em muitas famílias. O resultado final pode reforçar a esperança ou frustrá-la de vez, e é aí que mora o perigo.
“As discussões no Sínodo foram calorosas e até conflitantes em alguns momentos, isso apenas reforça a importância do tema e a sensibilidade com que se deve tocá-lo” |
IHU On-Line – Já é possível prever implicações teológicas e pastorais a partir do Sínodo dos Bispos: os desafios pastorais da família no contexto da evangelização?
Cesar Kuzma – É como disse acima, ao falar da família no contexto da evangelização, tal intenção obriga a falar antes da família e do seu contexto. São realidades difíceis e duras e que precisam de uma resposta pastoral edificante. O Sínodo deve ater-se a isso. Pelo que acompanho, ouço e leio a respeito, percebo que a questão da Eucaristia é algo sensível à maioria dos bispos, e o acesso a ela por pessoas nestas condições especiais deve ser revisto. Alguns bispos até falaram que isso já deveria ser firmado, a fim de que o Sínodo se preocupe com outras questões urgentes e importantes. Vemos aí uma intenção de Francisco, de Kasper, de Bruno Forte, de Maradiaga e muitos outros, embora vozes fortes como Gerhard Ludwig Müller e outros se façam presentes. O tema em si é discutido, o que já mostra que há conteúdo para tal. Penso que este é o primeiro passo e tenho esperança de que este voto seja favorável. Se não for, imagino que já desencadeia o desânimo em vários outros pontos e o resultado do Sínodo tende a não trazer novidade.
Outro ponto que deve ter uma mudança significativa é o processo de nulidade, isto é, uma revisão da forma como é feita, dando à comunidade local uma autonomia maior, até dentro do que lhe confere como comunidade e sacramento, no exercer da reconciliação e da aceitação. Há boas propostas neste campo, tanto para nulidade como também para proposta de um segundo matrimônio religioso. Não se pode ignorar a questão dos homoafetivos e esta intenção vai além do casamento em si. Sem resolver estas questões, que tocam os membros, é impossível falar da missão da família no mundo.
A Igreja, pelas famílias, vai à sociedade para acolher e para dialogar, jamais para impor. O Reino não é uma imposição, o Reino é um dom gratuito. Se entendermos que o amor é que faz uma família ser família e que o amor é capaz de gerar vida, muita coisa se resolve internamente e muitas obras se abrem externamente. Faz-se necessário redescobrir a novidade no amor no mistério que toca a todos nós, só assim teremos um reto entendimento e acolhimento, e só assim teremos uma vocação autêntica e coerente com a proposta do Evangelho.
IHU On-Line – Que contribuição a Igreja e os leigos brasileiros podem dar ao Sínodo?
Cesar Kuzma – A Igreja do Brasil, principalmente pela prática dos leigos, na autonomia do seu agir, já seguem um caminho de inclusão e de abertura em várias frentes. Em muitos lugares temos uma Igreja que acolhe e que se faz aberta e segue firme na caminhada, sabe o seu foco e lança-se a seu destino. Acredito que a experiência de várias comunidades e pastorais pode enriquecer a discussão dos bispos e isso pode ser levado. Todas essas novas realidades que são apontadas e que atingem as famílias estão bem presentes em nosso contexto. Então, um olhar para elas, para o que se avançou, mas também para os limites, pode ser promissor.
“O Reino não é uma imposição, o Reino é um dom gratuito” |
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Cesar Kuzma – Sim. Tenho esperança nesta nova postura eclesial que se inaugurou com Francisco. Estamos sendo chamados ao novo e este chamado é feito a toda a Igreja. Devemos saber acolher e ter o discernimento para perceber aquilo que o Espírito nos diz, hoje. Se o momento se tornou favorável para discutir a questão da família, em toda a sua dinâmica e complexidade, devemos acolher e avançar. Muito já se fez e já se falou, mas os tempos nos exigem novas posturas e devem ser posturas que acolhem. Precisamos ter um olhar sensível, na ternura, deixando-se tocar por aquilo que o Espírito nos impulsiona e nos permite ver. Devemos olhar o coração mais do que a lei, a vida concreta mais do que a doutrina, o amor mais do que a eficácia.
A Igreja é chamada a servir e os desafios não estão apenas fora, mas dentro de nossas comunidades, em nossas famílias, então é ali que deve estar o nosso olhar neste instante. Esta é a Igreja, e ela é formada por pessoas comuns, por famílias, por jovens, por velhos, casados e não casados, felizes e machucados, por pessoas que amam, que cantam, que louvam e que rezam, mas que acima de tudo esperam algo novo em suas vidas e se lançam ao novo com ar de esperança. Que este sentimento se faça presente. Reforço aqui o que já falei acima, extraído da pergunta 7 do segundo questionário: “o olhar fixo em Cristo abre novas possibilidades”. Que possamos olhar para ele, e que o seguimento do seu Reino traga sim novas possibilidades!
Por Patrícia Fachin
Fonte: Unisinos