Deus transbordando em nós: A Trindade
Liturgia da Missa – Reflexões para a Mesa da Palavra
Ano C – Santíssima Trindade
“Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora. Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará. Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu”. Jo 16, 12-15
Aula de Catecismo. Dona Iris fala da Santíssima Trindade aos seus alunos. “Porque, meus filhos, há algo fundamental. É necessário que vocês entendam serem três pessoas em um só Deus. Enquanto fazia esta afirmação, realizava o gesto indefectível dos três dedos levantados. Antônio Claret, aluno aplicado sempre posicionado nas primeiras carteiras, coça a cabeça cheia de dúvidas. “Mas sabe, Dona Iris, estas coisas todas que a senhora me ensinou antes eu compreendi. Agora, três pessoas em um só Deus é complicado demais e eu não sei se consigo acreditar”. Dona Iris, levantando só o indicador, aponta-o para Claret e, olhos ameaçadores, lhe diz: “Meu filho, nunca diga isto. Acredite e ponto final. Trata-se de um mistério. Escutou bem? Um mistério!” E o garoto teve que se resignar ao argumento definitivo. Era impossível se falar, além daquilo que já havia sido dito sobre “mistério”.
Este é o dia especial para celebrarmos a Santíssima Trindade. Na verdade nós a comemoramos a cada dia, eis que a Trindade é Deus e Ele está no fundamento de tudo o que vivenciamos na fé. Quem de nós, por exemplo, não inicia a oração e a termina invocando a Trindade Santa com o sinal da cruz sobre o corpo?
O risco de a celebrarmos sempre é o de irmo-nos “acostumando” com aquilo que proclamamos rezando e assim passarmos a vivê-lo no “modo automático”, sem que se dê conta da profundidade daquilo que ao lábios pronunciam. Tratar da Trindade é entrar num espaço habitado por algo imenso, um mistério, como bem dizia a catequista na gostosa história do Eduardo Machado.
Só que, diferentemente do que ensinava aos alunos, mistério não é algo que, por não conseguirmos aquilatar e muito menos dominar, deverá ser abandonado e “nunca mais se fale dele”. Mistério é sempre convite à aproximação para, pouco a pouco, adentrar-se em suas maravilhas.
Obviamente que aqui na Terra nenhum de nós será capaz de abarcá-lo todo. Mas poderá, a cada dia, compreendê-lo um pouco mais. Bem além desta palavra que diz respeito só ao cérebro, saborear em todo o corpo o Amor transbordante desse Deus Trino em nós.
Há muito equívoco a respeito da palavra mistério. Dona Íris foi prova disto, mais de cinquenta anos atrás, ao querer fazer que Antonio Claret e os demais alunos, o imaginassem como algo do qual é impossível o ser humano se aproximar. Tratar o mistério como interdito, proibido só conduzirá a um afastamento dele.
Outra ideia errada do mistério costumeiramente encontrada por aí, é que se trata de tudo aquilo que envolva o desconhecido e termine por gerar suspense. Um livro, ou filme policial, por exemplo.
Para compreender mistério no sentido bíblico tomemos, por exemplo, uma hipotética conversa sobre o Oceano Atlântico. Há várias maneiras de conhecê-lo. Acaso estive diante dele pelo menos uma vez, posso afirmar que o conheço. Mas outra pessoa que afiance haver molhado nele os pés terá conhecimento um pouco maior.
Chega então alguém nessa conversa e diz haver mergulhado no mar várias vezes. Com certeza que conhecerá bem mais do oceano. Vem por fim um marinheiro assegurando conhecê-lo muito mais, eis que vive no Atlántico praticamente todo tempo da sua vida.
Ninguém está mentindo. Todos conhecem o oceano, mas não há também como duvidar de que há muito mais coisas a conhecer nele, que mesmo esse marinheiro mais experimentado nem seja capaz de isuspeitar. Agora mesmo em suas profundezas, nas nossas costas, numa camada a qual deram o nome de pré-sal, descobriu-se petróleo.
Se com o mar é assim, imagine-se com Deus… Por mais que nos empenhemos em gastar a vida estudando-o e, mais do que isto a experimentá-lo, haverá infinitas outras facetas do seu mistério, das quais nunca fomos capazes nem de imaginar. Da mesma maneira que o oceano, o mistério de Deus configura-se em constante convite ao mergulho.
Quando éramos crianças fomos alfabetizados. Mas não foi porque já sabíamos ler que nos acomodamos. Havia (e há) muito mais a ser aprendido, além daquilo que nos foi ensinado pela primeira professora no tempo da alfabetização. Com o mistério é assim também. Não dá para se contentar com o pouco da infância.
Mistério é chamado, a que nos aproximemos e saboreemos de algo, que é infinitamente maior do que nós, mas que poderá ser, pouco a pouco, desvelado. Atenção, eis que isto acontecerá na medida da disposição, proximidade e intimidade que vivermos com o Senhor. Ou seja, quanto mais distanciados estivermos dele, poderemos até dizer que conhecemos o “oceano”, mas ele estará sendo visto de longe, ou como num filme, livro, ou foto.
Afirmar, como fiz acima, que a Trindade nos chama é pobre. Melhor traduzir isto dizendo, que Ela é um eterno transbordamento de Amor sobre cada um de nós e que este Amor derramado e envolvente, convida-nos a que mais o compreendamos e experimentemos. Afinal o Amor, mais do que ser entendido, necessita ser vivido.
Em Itaici, casa de retiros dos jesuítas em São Paulo, há uma capela chamada da Trindade. Nela se pode admirar um grande painel baseado na cena de Abraão acolhendo a Trindade sob o carvalho de mambré. Na obra do artista Claudio Pastro, reproduzida acima na foto de Dom Wilmar Santin, o Pai mira o Filho, Ao mesmo tempo o Espírito observa a realidade em torno. Já o Filho, este olha diretamente para nós. Seja qual for a posição que a gente se coloque dentro da Capela, Ele estará nos mirando.
A Trindade “funciona” na energia do Amor. Será nessa dinâmica que entenderemos enfim esses olhares. O Pai admirando o Filho posto no meio de nós. O Espírito a cuidar do mundo, animando-nos para que o possamos transformar e o Filho a nos acompanhar vida afora. Mesmo que desta presença não se possua consciência.
Pistas para reflexão durante a semana:
– Qual é a minha relação com o mistério de Deus?
– Como funciona a dinâmica do Amor da Trindade em mim?
– De que maneira experimento na vida corrente a Trindade?