A mística na encruzilhada da pós-modernidade
Por Pe. Paulo Sérgio Carrara, CSSR*
O termo mística passou a designar realidades tão variadas que mal conseguimos entender a que o termo realmente se refere. O uso excessivo de um termo acaba destituindo-o de seu conteúdo mais essencial. Por causa disso, nos perguntamos: que queremos dizer quando dizemos mística? O termo surgiu no contexto linguístico da filosofia religiosa helenista. No cristianismo, foi associado ao mistério cristão, segundo alguns textos bíblicos. “Segundo o meu evangelho e a mensagem de Jesus Cristo – revelação de mistério envolvido em silêncio desde os séculos eternos, agora, porém, manifestado” (Rm 16,25). Em 1 Cor 2,7 lemos: “Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou à nossa glória”. Também em Cl 1,26: “O mistério escondido desde os séculos e desde as gerações, mas agora manifestado a seus santos”. Mística, na teologia cristã, se refere à existência vivida a partir do mistério de Jesus Cristo que se comunica na palavra e na celebração.
O cristianismo se entende como experiência de Deus em Cristo por graça do Espírito. Para o apóstolo Paulo, o cristão é alguém que está em Cristo porque foi chamado por Deus a viver em comunhão com seu Filho: “Deus vos chamou à comunhão com seu Filho Jesus Cristo” (1 Cor 1,9). E quem está em comunhão com Cristo se torna nova criatura (cf. 2 Cor 5,17). Antes de qualquer especulação teológica ou filosófica sobre o cristianismo, ele se caracteriza como a experiência religiosa que fazemos desde a revelação de Deus em Jesus Cristo. O mistério do amor absoluto e incondicional de Deus se aproximou de nós em Jesus e no Espírito. O cristão, por graça do Espírito, encontra-se pessoalmente com Jesus Cristo. Tal experiência pode também se expressar na modalidade mística.
São João da Cruz define a mística como “ciência de amor”. O grande doutor se refere à mística como “conhecimento amoroso de Deus”. O amor, nesse caso, tem valor epistemológico, pois produz um conhecimento da presença originária de Deus no mais íntimo da pessoa. A mística consiste no encontro com a realidade última. “Ocorria-me de repente tal sentimento da presença de Deus, que de modo algum podia duvidar que o Senhor estivesse dentro de mim e eu toda mergulhada nele”, afirma Santa Teresa. E acrescenta: “creio ser o que chamam de teologia mística”. Tal experiência tem efeito transformante, muda o modo de ser, agir, pensar, relacionar-se com Deus, as pessoas e o mundo. Na experiência mística, o sujeito se percebe posto em atenção à presença de Deus no mais íntimo do seu ser. Atenção que vai além da dimensão intelectual, toca a totalidade da existência e é sentida como graça, ou seja, não provocada pelo próprio sujeito, mas concedida pelo próprio Deus.
A inefabilidade emerge como o traço distintivo da experiência mística. Os místicos, ainda que escrevam ou testemunhem, aludem a horizontes indescritíveis e inalcançáveis. O mistério divino não se enquadra em nenhum conceito; mesmo que se deixe experimentar, permanece indisponível e inabarcável, afinal, ele habita em luz inacessível e nenhum homem o viu e nem pode ver (cf. 1 Tm 6,16). João da Cruz fala de “um saber não sabendo”. A experiência mística não se identifica com conteúdos a ser transmitidos. Teresa declara sobre suas experiências: “O intelecto não é capaz de compreendê-las. As comparações não podem servir para explicá-las”. Segundo o filósofo Henrique de Lima Vaz, o domínio da mística não é o do alógico ou do irracional, mas do translógico: “a realidade se alcança com um passo além do lógico ou do pensamento conceitual”. Tem a ver com a estrutura vertical do ser humano em sua orientação ao transcendente. Só restam aos místicos a linguagem simbólica, às vezes subversiva, e os neologismos, que os aproximam dos poetas. Adélia Prado define a poesia como “forma de acesso ao real”. Como se o poeta, de repente, percebesse a “aguisse” da água. Os místicos, por sua vez, percebessem a “deísse” de Deus ou a “deidade de Deus”, porque o próprio Deus se aproxima de maneira inesperada e surpreendente.
A mística, quando a estudamos, parece inalcançável para a maioria dos cristãos; seria privilégio de uma elite espiritual, alheia aos problemas reais da existência. Segundo o grande teólogo Rahner, no entanto, todo cristão é chamado a atuar o “elemento místico” que deriva da vida de fé. A mística, nesse caso, se torna momento interno e essencial da fé, pois o mais crucial para o cristão se encontra na experiência. Em Cristo, Deus se revelou, aproximando-se do ser humano em verdade e graça, mas não se desvelou. Sua incompreensibilidade permanece e objetivar Deus se mostra tarefa impossível. Mistério não significa enigma, pois esse pode ser desvendado. O mistério ultrapassa a inteligência humana e a razão não chega a apreendê-lo totalmente. Deus é o mistério santo, mistério abissal e indizível que se expressou para nós em Jesus, num evento dialógico-comunicativo, para nos introduzir em sua própria vida. Para o teólogo alemão, o mistério se revela a forma mais elevada de conhecimento. E a única maneira de conhecer o mistério de Deus é amando-o. Como afirma São Gregório Magno: “amor ipse notitia est” (O próprio amor se torna conhecimento). Quanto ao conhecimento racional de Deus, embora necessário, se mostra imperfeito diante do amor que acontece na experiência. Não basta ao cristão estudar Deus para conhecê-lo, é preciso amá-lo, uma vez que “quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (cf. 1 Jo 4,8). A mística não aliena dos problemas reais, mas leva às formas mais concretas de amor. Os místicos autênticos são os que assumem mais radicalmente a tarefa da transformação do mundo em Reino de Deus. É o caso, por exemplo, de Dom Hélder, místico e profeta da paz e justiça universais.
A pós-modernidade se caracteriza como recusa da pretensão absoluta de um saber puramente racional e científico que reduz a realidade a mera objetividade. O ser humano se depara com novas formas de conhecimento e de linguagem, abrindo espaço para o fascínio, o encantamento, o simbólico, a emoção, a admiração e a contemplação. As ideais claras e distintas deixam de ser a única forma de aproximação da verdade. A razão sozinha não produz vida feliz. Eis a máxima repetida por muitos: “eu não quero ter razão; eu quero é ser feliz”. A pós-modernidade acena a uma racionalidade outra, com suas próprias leis. E ainda que possa parecer irracional, é real, uma vez que pertence ao campo da experiência concreta, que não se enquadra nos termos da razão técnica e cientifica, mas pertence ao universo do “não lógico”, o qual constitui parte integrante da verdade do ser que, ao mesmo tempo, se mostra e se esconde.
No campo da fé, o homem pós-moderno resiste às explicações dogmáticas e morais sobre Deus, impostas desde a autoridade extrínseca. Ele permanece, no entanto, aberto ao mistério da transcendência de Deus e busca experimentá-lo, mesmo que de maneira ambígua, para descobrir sentidos novos para sua existência. A mística, com sua dimensão mistagógica, se mostra capaz de atrair e contagiar. Sua linguagem, mais narrativa e simbólica, comunica melhor o inefável, transmitindo mais o sabor de Deus do que o saber sobre Deus. O mistério inefável que a mística anuncia se revela mais consistente do que qualquer explicação racional sobre Deus. Por pertencer mais à ordem da epifania do que à ordem da apologia, está em condições de nos ajudar a superar o enrijecimento dogmático-moral no qual enquadramos nosso discurso sobre Deus. As palavras do filosofo francês Bergson soam ainda proféticas: “a religião é a cristalização causada por um esfriamento intelectual daquilo que a mística depositou, de maneira incandescente, na alma da humanidade”.
*Pe. Paulo Sérgio Carrara, CSSR – Doutor em teologia, professor na FAJE e no ISTA p-paulus2011@hotmail.com
Fonte: Dom Total