Acolher interpelações
Em diferentes passagens do Evangelho, Jesus chama a atenção para uma incompetência das cidades: não escutar advertências e interpelações. O Mestre compara as cidades de Cafarnaum, Betsaida, Corazim e aquelas pagãs, como Nínive, Sodoma e Gomorra. Destaca que as cidades pagãs, surpreendentemente, acolheram melhor suas interpelações. Desconsiderar essas indicações pode inviabilizar as mudanças necessárias, permanecendo, assim, o caminhar rumo ao caos e os descompassos que pesam sobre a vida. Também faz crescer a dureza de coração e imperar grande insensibilidade, acirrando os embates entre pessoas, grupos e instituições. Os prejuízos se multiplicam, os retrocessos tornam-se evidentes. Tudo em consequência da surdez ante às interpelações.
Na mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, o Papa Francisco fez uma advertência sobre algo que, de modo sorrateiro, destrói a paz: a globalização da indiferença, fenômeno que atinge o ápice no atual momento da história. Tornam-se cada vez mais comuns os corações fechados, desinteressados pelos outros, que se cegam propositadamente para não ver o que acontece ao redor, esquivando-se de serem afetados pelos problemas alheios, particularmente dos mais pobres. Ora, só se alcançará a paz quando cada pessoa acatar a interpelação de ser “o coração da paz”. Somente assim, todos serão capazes de compreender e priorizar a tarefa de se respeitar incondicionalmente a dignidade de cada pessoa, fundamentando as bases para um autêntico humanismo integral.
Esse investimento – o de ser “coração da paz” – não tem custos e resulta em ganhos determinantes para alicerçar o indispensável sentido social que deve alimentar o comprometimento solidário. Uma proximidade fundamental para configurar os tecidos social e cultural, buscando o equilíbrio e a paz. Aceitar essa interpelação significa admitir que é preciso revisar a gramática que rege os funcionamentos do próprio coração e dela retirar ódios, rancores, preconceitos – os dispositivos de discriminação fundamentados na hegemonia de sentimentalismos e emoções que estão descasados da racionalidade, propiciando injustiças com pessoas e grupos.
Entre tantas regras de ouro, a interpelação firmada no Evangelho – “não te deixes vencer pelo mal, antes vence o mal com o bem” – é fundamental ser acolhida e praticada como exercício que modula o coração na contramão das cardiopatias graves que provocam prejuízos irreversíveis no tecido humanístico. Essa passagem aponta, portanto, que o bem promove e garante a paz duradoura. E para efetivamente acolhê-la deve-se investir na lei moral que conduz a competência humana. Assim, é possível reverter cenários e quadros que degradam o mundo. O combate à anarquia, a busca pela superação da desordem social, o “não contundente” à guerra, o fim das injustiças e da violência dependem do cultivo dos valores morais.
Nesse sentido, a lei moral que deve reger a consciência de cada indivíduo faz crescer a convicção de que é preciso combater a pobreza para que se impere o dom da paz. Isso porque, apesar dos avanços tecnológicos e dos muitos progressos, frutos da inteligência humana, cresce a irracional disparidade entre ricos e pobres, até mesmo nas nações mais desenvolvidas. Essa situação precisa incomodar a consciência de cada cidadão, que deve refletir sobre o que possui, o que usa e acumula, colocando-se no lugar de quem está na miséria.
Muitas, incontáveis, as interpelações para se alcançar um mundo mais justo e de paz devem ser acolhidas no cotidiano, nas práticas religiosas e espirituais, a partir do zelo e do apreço pela honestidade, cultivando um sentido humanístico e social autêntico que muda a vida das pessoas e, consequentemente, os rumos das sociedades. “Quem tem ouvidos, ouça”!
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Fonte: Amai-vos