Hábito não é fidelidade.
“O maior obstáculo que se interpõe à conversão que o Papa Francisco quer que a Igreja faça constitui-se, em certa medida, pela atitude de boa parte do clero, superior e inferior. Atitude, às vezes, de fechamento, senão de hostilidade. Como os discípulos no Jardim das Oliveiras, os seus discípulos ainda dormem. O fato é impressionante”, constata artigo publicado pelo jornal L’Osservatore Romano, na edição deste final de semana.
O artigo descreve algumas causas. “A primeira, é o nível cultural modesto de parte do clero, tanto no alto, quanto embaixo”.
A necessidade de uma conversão pastoral da Igreja, que muitas vezes parece despreparada para enfrentar os complexos desafios do tempo presente, é evidenciada, a partir da Evangelii gaudium, do Papa Francisco, no livro Bellezza del gaudio evangelico. Al centro della vita cristiana [Beleza da alegria evangélica. No centro da vida cristã] (Livorno, Mauro Pagliai Editore, 2017, 179 páginas). O autor do livro é Giulio Cirignano, padre italiano e professor emérito de Sagrada Escritura da Faculdade Teológica da Itália Central.
O jornal do Vaticano publica trechos do capítulo intitulado “O clero dorme”, na edição de 23-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o artigo, “Quando o padre está marcado demais pela mentalidade religiosa e pouco por uma fé límpida, então tudo fica mais complicado, porque ele corre o risco de se tornar vítima das muitas coisas inventadas pelo ser humano sobre Deus e sobre a sua vontade”.
Eis o texto.
O maior obstáculo que se interpõe à conversão que o Papa Francisco quer que a Igreja faça constitui-se, em certa medida, pela atitude de boa parte do clero, superior e inferior. Atitude, às vezes, de fechamento, senão de hostilidade. Como os discípulos no Jardim das Oliveiras, os seus discípulos ainda dormem. O fato é impressionante.
Por essa razão, o fenômeno deve ser examinado a fundo, nas suas causas e nas suas modalidades. O clero arrasta atrás de si as comunidades, que, ao contrário, deveriam ser acompanhadas neste momento extraordinário. Grande parte dos fiéis compreendeu, apesar de tudo, o momento favorável, o kairós que o Senhor está dando à sua comunidade. Grande parte dos fiéis está em festa.
No entanto, aquela porção mais próxima de pastores pouco iluminados é mantida dentro de um horizonte velho, o horizonte das práticas habituais, da linguagem fora de moda, do pensamento repetitivo e sem vitalidade. No fundo, o Sinédrio é sempre fiel a si mesmo, rico em devoto obséquio ao passado confundido com fidelidade à tradição, pobre em profecia. Quais as razões de tudo isso?
No primeiro lugar da lista, provavelmente, é preciso colocar o nível cultural modesto de parte do clero, tanto no alto, quanto embaixo. Não podemos generalizar e, portanto, não encontramos nenhuma dificuldade em admitir que há muitas exceções a esse estado de coisas, felizmente.
Em muitos presbíteros, infelizmente, a cultura teológica é escassa, e a preparação bíblica é ainda menor. A causa desse deplorável estado de coisas é facilmente identificável. Quando um curso de estudos de nível universitário, apenas para dar um exemplo, não deixa no estudante a vontade de pensar, de continuar estudando, de exercer um mínimo de senso crítico, isso significa que falhou em sua tarefa.
A configuração de grande parte dos seminários não favorece a formação de uma mentalidade de trabalho e de empenho. Os anos de preparação ao presbiterado deveriam alimentar a consciência acerca da necessidade do ministério como um verdadeiro trabalho. Como qualquer pessoa, o padre também trabalha para ganhar o pão.
Pode-se objetar que, frequentemente, os padres estão sobrecarregados com muitas atividades. Isso responde à verdade. Porém, se as muitas atividades impedem que o padre desempenhe a tarefa que lhe é própria, devemos nos interrogar. Talvez pese sobre o padre uma imagem que vem do passado e que não é mais sustentável? Referimo-nos a uma imagem herdada na qual o padre era pensado como o chefe e o dono da comunidade e que, em virtude da sua condição celibatária, era como que compensado por uma espécie de papel de responsabilidade individual totalizante. Uma espécie de “protagonista” solitário. Os órgãos de sinodalidade funcionavam e funcionam pouco e mal. Nesse esquema, pensava-se que a vitalidade de uma comunidade passava do padre aos fiéis, constantemente conservados em um papel passivo. Tudo isso, hoje, não é mais aceitável.
Há ainda um fator mais grave que impede que aqueles que carregam o dom do sacerdócio ministerial interceptem as perguntas que vêm da história e acolham com alegria e entusiasmo os convites à mudança. É um fator cujo peso dificilmente pode ser medido, uma espécie de gaiola paralisante. Podemos defini-lo, substancialmente, como a modalidade de conceber a experiência religiosa em termos velhos, aqueles que amadureceram e se consolidaram no longo período da Contrarreforma. Modalidade que envolve a teologia, a espiritualidade e a prática.
Uma teologia, em primeiro lugar, sem os recursos da Palavra, sem alma, que transformou a apaixonante e misteriosa aventura do crer em religião. Fé e religião: no imaginário comum, são quase sinônimos. Na realidade, são experiências profundamente diferentes.
A religião nasce do medo e da necessidade do ser humano que, impulsionado por esse duplo fator, encaminha-se em busca de uma mão para se agarrar. Vai em busca de uma ajuda que, muitas vezes, constrói-se, em parte, também de acordo com as suas necessidades. É uma experiência bonita, certamente, que se alimenta da consciência do mistério, que todo ser humano traz dentro de si. Porém, tem este grande limite: o Deus da religião é, em geral, projeção do ser humano, da sua mente, dos seus medos, das suas necessidades. É um deus hipotético.
A fé tem uma origem totalmente diferente. É acolhida de um evento humanamente impensável. Na experiência da fé, não é primariamente o ser humano que vai rumo a Deus, mas o oposto. Deus se torna experimentável ao ser humano, que é convidado a acolhê-lo. A fé é o vazio do ser humano e o pleno de Deus: nele, o ser humano encontra a sua completa dignidade.
Devemos admitir: estamos todos profundamente tecidos de religião. Todos, sem excluir ninguém. Ou, melhor, a necessidade religiosa nos acompanhará até o fim da vida. Nunca nos abandonará. Sempre teremos o instinto de buscar aquela misteriosa mão para pousar as nossas vertigens existenciais. Portanto, nenhuma desvalorização da religião, mas devemos reiterar fortemente que a fé é outra coisa.
Quando o padre está marcado demais pela mentalidade religiosa e pouco por uma fé límpida, então tudo fica mais complicado, porque ele corre o risco de se tornar vítima das muitas coisas inventadas pelo ser humano sobre Deus e sobre a sua vontade. Quando é o ser humano que fala de Deus, ele o faz como ser humano, imaginando, hipotetizando e, às vezes substituindo-se a Ele. Este, que é totalmente outro, não suporta sem encerrado em esquemas estreitos, típicos da mente humana. “Ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1, 18), dele sabemos só aquilo que o Filho quis revelar. Deus é amor: isso é tudo. Amor como dom de si. Assim, Ele corrige, de forma evidente, os milhares de involuções que costumamos fazer ao amor.
Fonte: Unisinos