A Voz do Pastor – Set 2017

Publicado em 08/09/2017 | Categoria: Notícias |


avozdoPastorUMA ESPIRITUALIDADE BÍBLICA

  Eu ainda era seminarista, quando fui tomado de um forte desejo: o de mostrar às pessoas que acreditar em Deus não é carolice, que perceber a sensibilidade de Deus não é feito de gente desocupada, que entender cada sopro da sua Palavra não é regredir ao passado. Pelo contrário! Nós, que cremos, somos homens e mulheres do futuro. Nós habitamos uma terra que ainda não foi descoberta. Nós habitamos a terra da promessa que já se realizou, mas não ainda totalmente. Enquanto realizada, essa promessa é o nosso presente. Enquanto promessa, é o nosso futuro. Nós já estamos lá sem sair daqui. Mas estar aqui só é possível enquanto estivermos lá.

                O realismo narrativo que a Bíblia adota não deixa de surpreender, e isso acontece desde o começo de tudo. No núcleo da revelação bíblica não encontramos as dissociações, que se tornaram presentes no mundo ocidental entre alma e corpo, interno e externo, prática religiosa e vida comum. No centro da Bíblia está a vida e ponto. E essa vida Deus ama. Porque Ele “não é um Deus de mortos, mas de vivos” (Lc 20,38).

                Desde o primeiro sopro vital que transformou o homem num ser vivo, no princípio dos princípios, ficou estabelecida, e para sempre, uma fascinante e inquebrantável aliança, aquela que une espiritualidade divina e vitalidade humana. O Espírito de Deus não é experimentado senão no extremo da carne tornada viva. O sopro vital é percebido a partir do barro. A tangível passagem de Deus em nossa vida se faz através do que já somos e de onde nós estamos.

                É isso que nem sempre as pessoas entendem.

A Bíblia se afasta dessas versões espiritualistas, que distorcem a intenção de Deus. A Bíblia defende uma visão unitária do ser humano. O corpo deixou de ser visto como uma prisão da alma, uma decadência da alma, como defendia o neoplatonismo. Essa é a grande novidade bíblica: o mais espiritual não acontece de outra forma senão na mediação do mais corpóreo. “Em verdade lhes digo que vocês verão o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem” (Jo 1,51). Essa é que continua sendo a grande novidade bíblica, a inalterada e ainda não percebida novidade bíblica.

O nosso corpo é a língua materna de Deus. A vida é um laboratório de atenção, para notar o imperceptível.

É preciso sensibilidade e espanto para perceber, a cada novo instante, por precário que seja, uma nova oportunidade do acontecimento da Presença: são os passos do próprio Deus. Ele anda pelo cair da tarde em nosso jardim interno, e, como se fôssemos homens e mulheres ainda na manhã da Criação, Ele vem e pergunta a cada um de nós: onde você está?

“Este mistério radical é sempre de proximidade, nunca de distância; sempre amor que se dá a si mesmo, nunca juízo” (Karl Rahner).

                Ele só quer algo de nós: a nossa presença à sua Presença. Deus espera por nós em tudo o que encontramos. Não se trata de reentrar na esfera íntima e esquecer do resto. O desafio é estar em si e experimentar, com todos os sentidos, a realidade daquele que vem. O desafio é atirar-se para os braços da vida e escutar aí o bater de um grande Coração. Sem fugas nem idealizações. Os braços da vida, e só, e como ela é.

                A Bíblia já sabia disso, desde quando os primeiros textos tomaram forma. Em várias sociedades ocidentais acontece hoje, um encantamento, com os prodígios operados por técnicas modernas. Sem lhes tirar a grandeza do empreendimento, a Bíblia já sabia disso, e desde muito lá atrás.

Mas não precisamos alimentar ilusões com prazo vencido. Certos radicalismos não têm espírito bíblico. A espiritualidade bíblica vive no momento presente. Nem se dependura no cabide frouxo de um futuro ainda porvir, nem pega carona no ônibus de um passado, que já não passa mais. Quem vive nostálgico do passado esqueceu de estar aqui. Quem se enreda no futuro, também.

Precisamos criar uma espiritualidade bíblica forte e real, que faça frente aos modismos, tanto dos que querem destruir tudo em nome de um não-sei-quê, quanto dos que se enclausuraram num passado idealizado, em busca de uma restauração, que também não-sabem-de-quê. Isso só pode ser fruto de um analfabetismo perante as expressões fundamentais da vida. Quem mora nas pontas perdeu o cerne.

                Precisamos olhar a espiritualidade bíblica como uma arte integral do ser. Quanto mais nossa fé for bíblica, mais ampliará a capacidade de hospitalidade daquilo que somos e daquilo que poderemos ser. “Ser cristão não significa ser religioso de uma certa maneira nem se converter numa determinada classe de pessoa por um método determinado – de pecador a penitente e santo. Ser cristão significa ser pessoa, não um tipo específico de pessoa, mas o humano que Cristo cria em nós” (Dietrich Bonhoeffer). É essa justamente a proposta da espiritualidade bíblica.

                Certa vez li uma frase que me fez pensar e que nos faz pensar: “Cada época deve reinventar para si um projeto de espiritualidade”. Reinventar não significa descobrir do nada. Significa reler, encontrar uma nova interpretação, arriscar uma nova síntese, propor uma nova gramática sapiencial. A Carta a Tito já dizia isso: “A graça de Deus, fonte de salvação, manifestou-se a todos os homens, ensinando-os a viver neste mundo” (Tt 2,11).

                O Mês da Bíblia chegou.

Setembro é quando a primavera retorna, quando os pássaros fazem ninhos, e os peixes sobem leitos caudalosos em busca de lugares para a reprodução. Setembro é quando a vida retorna. Não poderia haver mês melhor para celebrar a vida que a Sagrada Escritura contém e transborda.

O tema do Mês da Bíblia ajuda-nos a aprofundar nosso conhecimento e vivência da Palavra de Deus. Porém, mais importante que o tema é a própria Bíblia. É a Bíblia que importa como projeto de espiritualidade de um tempo sempre para HOJE e de uma experiência sempre para AGORA.

Embora a Escritura tenha nascido no solo arenoso da vida, embora o solo arenoso da vida produza espinhos e escorpiões, embora nem sempre o escritor bíblico tenha conseguido escapar dos condicionamentos históricos de seu momento, embora o armazenamento e a recuperação dos dados tenha coincidido muitas vezes com os interesses dos poderosos, nada disso enfraqueceu o poder transformador da Palavra.

É impressionante como o povo de uma minúscula região, esquecida pelos grandes do mundo, aprisionada em si mesma por tantas falhas e fracassos, conseguiu extrapolar seus próprios limites e alcançar os limites do mundo há quase quarenta séculos. Nenhum texto fica em cartaz por tanto tempo, nenhuma história sobrevive tanto, a menos que tenha algo relevante para dizer, a menos que essa relevância tenha tornado relevante também a vida de muitos homens, em muitos tempos e lugares.

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” (Leon Tolstói).

A Bíblia é isso: uma aldeia que se tornou universal, por ter captado a essência do humano. Porque, afinal, só a essência conta. Porque, no fim, só a essência permanece.

Que este Mês da Bíblia seja um mês para se redescobrir a essência do perfume humano. Precisamos imensamente dessa experiência, numa época em que o cheiro não anda dos melhores.

Que o mesmo alimento que restaurou vidas também restaure a nossa.

Irmãos e irmãs, peço-lhes a caridade de suas orações.

Que Deus os abençoe, com toda sorte de bênçãos.

Que a Virgem que acolheu e fez germinar a Palavra em terreno bom irrigue, com sua proteção de Mãe, tudo o que houver de arenoso no terreno de nossas vidas.

Que a Palavra que não retorna vazia (Is 55,11) complete o que falta em todos nós e nos encha de alegria e paz.

A todos o meu carinho e a minha bênção.

 + Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói



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