A Voz do Pastor – AGO 2019
Queridos irmãos e irmãs:
A conclusão das testemunhas oculares da Transfiguração do Senhor tem validade para todos os tempos.
É bom estar aqui!
Isso é ainda mais preponderante no século XXI, cheio das tecnologias da comunicação, mas vazio de conteúdo a comunicar. Quem nos dará conteúdo? Esse é o desafio dos novos tempos: gerar um conteúdo do qual estamos pobres.
Qual foi nossa parcela de contribuição para que o mundo se esvaziasse?
A crise da pós-modernidade é a crise do vazio: tudo, hoje, escapa a qualquer abordagem. Justamente, o excesso de comunicação e de manipulação gerou um vazio impreenchível. Esse é o nosso tempo. Há pobreza de conteúdo e de sentido, em todos os sentidos. Essa é a “noite do mundo”, segundo Heidegger.
Mas a “noite do mundo” não advém de uma provável ausência de Deus. É noite no mundo, porque os homens já não sofrem com essa ausência. As pessoas ainda acreditam, as igrejas continuam cheias, somos especialistas em lotar estádios, a religião é pop.
Mas cada qual trafega pelo mundo com o “seu Deus”, saído de algum supermercado particular de fé, onde Deus se encontra nas prateleiras, para ser “consumido” conforme gostos e conveniências. A doença mortal desse tempo é a falta de paixão pela verdade.
Por isso, a grande vocação do homem moderno é se transfigurar em Cristo. Esse é o primeiro, grande e irrecusável chamado: constatar o quanto é bom viver na claridade de Deus, onde todo o restante se torna luz. A mesma tendência que nos une ao Deus Trindade, mistério inefável de luz e paz, nos conduz ao irmão, mistério indizível do entendimento.
É por isso que é bom ficar aqui. Mas, que isso não se transforme num miniresort pessoal de consolo, uma forma de hedonismo espiritual.
É preciso evitar toda falsa experiência espiritual de evasão da realidade, a tirania de uma satisfação autogratificante. Se for assim, a vida cristã perde a oportunidade da vivência da fé para se converter num esteticismo espiritual de pessoas desencantadas. Esse formato de fé adapta as pessoas às suas disfunções e lubrifica o sistema. Longe de ser o óleo do motor de uma nova humanidade, trata-se de uma mística satisfatória que não promove qualquer processo de transformação da sociedade.
É, realmente, muito bom estarmos aqui!
E se esse momento de Tabor nos transfigura em pessoas novas, vão existir sinais de esperança. No fundo, até a busca insana de agradar os sentidos denota uma avidez de encontrar o sentido perdido. Não se trata de saudosismo, mas do esforço sobre-humano de reencontrar a terra depois do naufrágio, o ramo de oliveira no bico da pomba, um horizonte último que meça o tamanho daquilo que é, sempre, penúltimo.
Para ver os sinais de esperança, basta olhar em volta.
Vivemos a descoberta do outro, totalmente próximo pelo simples fato de ele existir. Vivemos a redescoberta do Outro, totalmente Outro, no despertar da necessidade de alicerces verdadeiros. Queremos uma pátria do espírito, nem sedutora nem manipuladora de ideologias, mas definitiva.
André Malraux, num momento de grande angústia do século XX, percebeu que a História havia entrado em crise existencial. Ele se perguntou: “Para que, afinal, ir à lua, se é apenas para se suicidar lá?” Foi ele quem afirmou que o século XXI seria o século mais religioso da História. Na tentativa de curar as feridas do século anterior, espiritualidade e mística seriam vividas na planície do mundo, num futuro transcendente para nossa espécie.
É por isso que revivemos o Tabor nas planícies: é por isso que é bom estar aqui.
Mas não por insegurança, distanciamento e evasão da realidade. Pelo contrário! Só do Tabor conseguiremos entender a real dimensão da vida. Esse é o mirante de onde o panorama se descortinará a nossa frente. A pretensão do Tabor é tornar a vida real. O Tabor é a medida definitiva da existência humana, o seu destino último, fora do qual tudo é penúltimo.
O Tabor é o nosso lugar. Lá, nos transfiguramos para nos tornar tudo o que somos. Nós somos a morada da Trindade, o Tabernáculo de Deus entre os irmãos, o Sacrário, permanentemente, aberto. O Tabor se encontra onde já nos encontramos.
Não seria, essa, a nossa primeira vocação?
Não é por nada que o Mês Vocacional começa com a Transfiguração do Senhor. Esse é o melhor momento para cada um se definir em relação ao que espera de si. Sem transfiguração interna, ninguém encontrará nem o seu lugar nem a sua vocação.
Já disseram que vocação é um conceito ultrapassado, que “não há ninguém chamando ninguém”. Mas por que a poesia do chamado de Deus não encontra mais lugar num mundo desencantado? Curioso! Pois é, justamente, esse mundo desencantado que pretende se reencantar com fórmulas mágicas e teorias esotéricas.
Será, então, a vocação uma ideia ultrapassada?
Penso que não!
Cada ser precisa, urgentemente, encontrar o seu lugar. Mas ninguém encontra nada que não tenha referência a um outro lugar, outra esfera, outra transcendência. Andam dizendo que, num mundo sem transcendência, a transcendência possível seria o amor pelos seus.
É bastante, mas, de certa forma, ainda pouco!
Até o amor precisa de transcendência, até o amor carece de um lugar onde repousar o cansaço e as frustrações. Sem esse espaço, nada resiste. É dele que nos vem o chamado para caminhar mais, ir além, cansar-se, mas jamais desistir. Sentir-se chamado, vocacionado, é um bom indicativo de que esse lugar foi encontrado.
A única gota de água retirada da galheta cheia, na Missa, é a melhor metáfora que encontrei para a vocação. Por que aquela, e não outra? Nada sabemos! E se não for possível ser aquela gota, chamada a participar da oferenda Divina, que sejamos todas as outras, que também foram chamadas, ainda que para lavar as mãos de um pecador.
Pedro estava certo: É bom estar aqui, no lugar onde o Senhor se transfigura! Esse é o nosso primeiro chamado: transfigurarmo-nos, nele. Vai ser sempre bom estar aqui!
Enquanto aqui estivermos, nada nos faltará.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
Fonte: Arquidiocese de Niterói