A “cultura do desperdício” que o papa denunciou na revista Civiltà Cattolica
Nunca falar do erro, mas procurar sempre o porquê: esta é a verdadeira novidade proposta por Francisco
Alguns interpretaram errado as palavras do papa em sua entrevista à Civiltà Cattolica e já saíram comentando que “o papa abre a Igreja para isso e para aquilo”, ou que “o papa não fala mais de bioética”. Errado. O papa fala de abraçar aqueles que erram. Mas com o esforço de reconstrução de um “eu” do homem ocidental, destruído e empobrecido, porque seria absurdo apontar o dedo quando o desastre está dentro de nós.
Ele nos abre o coração para ressoarem palavras antigas e uma urgência que já se propunha há tempos: menos leis e mais cultura que fale ao coração. Temos que olhar primeiro para quem faz errar, em vez de olhar para quem está errado. O papa chama essa cultura desastrosa, que nos leva a cometer erros, de “cultura do descarte”, e, como bom médico, tenta curar a doença e não apenas os sintomas. Sintomas como a exploração, o abandono, o aborto. A doença é a cultura do descarte, que faz pensar que há pessoas que devem ser jogadas fora. E isso não é um exagero: há filósofos modernos que argumentam que os bebês e as pessoas com deficiência mental não são pessoas. E se há quem descarta alguém, é porque é desse jeito que vive a sociedade ocidental.
O papa não foge das questões éticas: ele as contextualiza. “Não podemos insistir só nas questões do aborto, do casamento gay e do uso de anticoncepcionais. Isto não é possível. Eu não falei muito dessas coisas, e fui repreendido por isso. Mas quando você fala, tem que ser dentro do contexto”. E ele dá o exemplo para todos: nunca falar do erro como se fosse um simples fato de maldade que brota como um cogumelo, mas procurar o porquê: há um porquê a ser combatido e há uma pessoa a ser abraçada. Isto é contextualizar. Sem isso, temos uma pastoral missionária “obcecada com a transmissão incoerente de uma multidão de doutrinas impostas com insistência”. Nada precisa ser desarticulado, descontextualizado.
Voltando à cultura do descarte, registro aqui a satisfação de ver premiada uma frase minha: “o principal não é a lei, mas a cultura”. Por isso, escrevi alguns anos atrás o livro “A gravidez ecológica”, em que, juntamente com químicos e ecologistas, em vez de fazer julgamentos éticos negativos sobre os assuntos, eu apontava o dedo para a cultura ocidental, que gera esterilidade ao adiar a idade fecunda obrigatória e ao dar como única solução a incompleta assistência médica. É por isso que, há anos, eu tenho falado e escrito que o problema a resolver é a “cultura do descarte”, em que ninguém aceita a si mesmo nem as diferenças.
Dessa cultura também falaram Zygmunt Bauman e muitos ecologistas: uma cultura que produz descartes humanos e descartes urbanos. Escrevi no Osservatore Romano em 3 de fevereiro: “A sociedade do descarte consome e joga fora, e faz o mesmo com as pessoas, tornando-se auto-destrutiva. E na primeira era em que o homem produz descartes de forma irresponsável, é significativo o alerta de Zygmunt Bauman: além do descarte urbano, a sociedade do consumo produz também o descarte humano, assemelhados pela suposta inutilidade. Sem respeito pela vida, não se ama o meio ambiente nem o bem do homem, e sem um amor que inclua ambiente e escolhas sociais em favor dos necessitados, a defesa da vida é aleijada. A escolha da vida e a escolha do homem caminham de mãos dadas. Não por acaso, laicos e crentes se uniram em diversas lutas contra a manipulação genética e contra o patenteamento de seres vivos; uma união que poderia continuar em muitas outras áreas da vida, da sua alvorada ao seu ocaso. Não é um encontro impossível”.
Da condenação da cultura que faz errar, nasce um abraço a todas as periferias: a periferia de quem comete erros e precisa ser resgatado, a de quem é marginalizado por causa da pobreza, mas também a de quem é marginalizado porque resiste e não aceita descartar. A perseguição acontece em nossas escolas, escritórios, hospitais, contra quem se opõe, com as palavras e com os gestos, a um mundo que descarta. Primeiro a cultura, depois as leis, diz o papa. Esta é a ordem lógica. Os primeiros cristãos não começaram fazendo leis, mas fazendo comunidade, fazendo um mundo novo. As leis foram a conseqüência óbvia.
Mas não se engane quem acha que o papa olha com bons olhos para aquilo que ele ainda sabe perdoar.
Fonte: Carlo Bellieni / Zenit