A ”fé laica” do Papa Francisco
O Espírito sopra onde quer, e a Sorte abre a sua cornucópia segundo a vontade. Durante anos, Eugenio Scalfari buscou o objetivo de uma entrevista com João Paulo II (que lhe foi negada pela comitiva de Wojtyla, que não queria conceder essa satisfação a um papa laico), e eis que, de repente, Francisco responde a dois dos seus artigos do verão europeu, em que o fundador do jornal La Repubblica expunha as interrogações de um não crente sobre um vasto arco de temas: da insustentabilidade no pensamento moderno de verdades absolutas ao problema da Trindade e da encarnação de Cristo negados pelo rígido monoteísmo judaico e islâmico, até chegar à questão do poder temporal da Igreja, tão contrastante com a mensagem de amor de Jesus.
A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 12-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Incluindo a mãe de todas as perguntas: “Se uma pessoa não tem fé nem a busca, mas comete aquilo que para a Igreja é um pecado, ela será perdoada pelo Deus cristão?”.
“A Igreja é mãe”, intitula-se hoje o L’Osservatore Romano, e Francisco responde ao “Ilustríssimo Doutor Scalfari”, evitando cuidadosamente de retratar um Deus cristão, que, como burocrata, gira nas mãos uma prática do não crente e depois decide, em onipotência, se deve dar o carimbo da absolvição.
Francisco vai além, não fala nem de um “perdão”, que cai de cima. Ele conta sobre o Deus de Jesus, cuja “misericórdia não tem limites”, e insiste em um princípio, reafirmado pelo Concílio e profundamente enraizado na moral laica: “O pecado, mesmo para quem não tem fé, existe quando se vai contra a consciência”. Porque sobre o fato de decidir sobre como agir diante do bem ou do mal, “está em jogo a bondade ou a maldade do nosso agir”.
A longa “Carta a um não crente”, como será chamada a partir de amanhã, é acima de tudo o sinal da enorme liberdade interior à qual Francisco não quer renunciar. Já lhe custa não poder caminhar sem restrições por Roma, mas ele não pretende absolutamente se privar da comunicação direta com os seus contemporâneos. Trate-se de uma mulher abusada na América Latina, ou de um homem de cultura que o desafia com perguntas difíceis.
“A Igreja é mãe”, disse ele nessa quarta-feira aos peregrinos na audiência geral. Uma mãe que perdoa, compreende e “acompanha sempre” homens e mulheres que se voltam para Cristo. É esse acompanhar que interessa a Francisco, sem distinções de rótulos. Além disso, o papa que recusa o título de pontífice tem apenas um grande interesse desde que foi eleito: aproximar-se dos homens e das mulheres do seu tempo, especialmente aqueles – como notava o cardeal Scola com alarme há alguns dias – que sentem a Igreja abstrata e distante.
E assim, enquanto responde com afetuosa cortesia ao “Ilustre Dr. Scalfari”, ele ultrapassa os próprios termos de uma disputa antiga entre o Iluminista e o Jesuíta, entre o Racionalista e o Tomista ou o seguidor de Santo Agostinho (como era Bento XVI). Em oito pontos, Scalfari resume as suas perguntas nessa quarta no La Repubblica.
Quase como se ainda estivesse dentro de um debate sobre Fé e Razão, daqueles que apaixonavam Joseph Ratzinger cerebralmente. Mas a Francisco o duelo teológico, no fundo, não lhe interessa nada.
Ele se preocupa com romper o muro da incomunicabilidade, partindo do “confrontar-se com Jesus, eu diria, na concretude e na rudeza da sua história”. Ele se preocupa com um diálogo sem preconceitos voltado a um “sério e fecundo encontro” com os não crentes (e, pode-se dizer, com todos os diversos crentes), não encalhando no jogo dos esquemas conceituais, que levavam Ratzinger, no fim, a teorizar uma Igreja que decide e explica o que é a razão, o que é a natureza, até mesmo como deve ser a laicidade do Estado.
Francisco, pode-se ver a partir da sua carta, quer outra coisa. Ele anuncia um Cristo que veio para dar a quem lhe ouve “liberdade e plenitude de vida”. Ele fala de uma fé que exclui a “busca de qualquer hegemonia” e se coloca a serviço de todas as pessoas. (E, enquanto isso, a notícia é dessa quarta-feira, ele explica aos homens que é melhor dedicar os conventos vazios à assistência, em vez de transformá-los em hotéis! Em maio passado, dirigindo-se à Cáritas Internacional, ele dissera que seria preciso “até vender as igrejas para dar de comer aos pobres”. Confrontando-se com o muro de silêncio da hierarquia eclesiástica).
Francisco fala de uma fé que não nos torna arrogantes, mas humildes. Que “não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro”. Que não é separação, mas diálogo. Uma fé em que se valoriza a obediência à própria consciência.
É até mesmo enganador, explica o Papa Bergoglio, falar de verdades “absolutas”. Porque isso evoca a ideia de verdades desvinculadas de toda relação. Não, insiste o papa, “a verdade é o amor de Deus por nós (…) a verdade é uma relação”. E cada um a expressa a partir da sua história e cultura, a partir da situação em que vive. Nada de “subjetivo” em tudo isso – observa Francisco –, mas sim a consciência de que a verdade não é um troféu a se brandir, mas “sempre se dá a nós como um caminho e uma vida”. Em última análise, a verdade é um só com amor.
Nessa perspectiva, Francisco quer “fazer um trecho de estrada junto” com os não crentes. Admitindo abertamente que a Igreja, nos seus expoentes, “pode ter cometido infidelidades, erros e pecados, e ainda pode cometê-los”.
Uma pergunta crucial, no entanto, permanece sem resposta nesse diálogo. Scalfari, tendo confessado que gosta muitíssimo do Papa Francisco, o Pobrezinho de Assis e Jesus de Nazaré, lembrava que a Igreja Católica se tornou aquilo que é porque criou para si uma estrutura de poder.
O que será dela? Aqui, Bergoglio não pode responder. Porque a interrogação diz respeito à sua própria liderança e ao sucesso ou insucesso da sua perestroika.
Fonte: Unisinos