A lógica trinitária do amor
A comunhão existente entre o Pai, o Filho e o Espírito ensinam a originalidade de comunicar, expandir, alargar, estender, difundir, dilatar, espalhar. (Reprodução/ Pixabay)
A relação trinitária impulsiona a ir além dos preconceitos, fechamentos e limites, compreendendo que amar é verbo, ação continuada, impulso para sair do egoísmo.
Por Sandra Sousa*
O amor trinitário alcança toda a extensão da Terra, numa intensa dinâmica de doação e comunhão, deixando suas marcas na história humana. Deus revela-se como o divino Doador. No princípio (Gn 1,1), encontra-se a Criação, e nela, instaura de forma direta uma relação de amizade que o faz dizer livremente ao homem e a mulher: “Eu vos dou” (Gn 1,29). Todos seus benefícios se estendem na caminhada para a terra prometida, junto ao povo escolhido. Sua promessa é realizada em Jesus quando o doa a toda humanidade, manifestando o cume da autodoação no seu Sacrifício Redentor, apresentado na Ceia Pascal: “Este é o meu corpo que é dado por vós” (Lc 22,19) e realizado na Cruz como gesto extremo de amor. O Espírito Santo comunica a vida do Ressuscitado, imagem perfeita do Pai, plenitude de comunhão que retorna à Fonte original.
Assim, do grande mistério revelado na Trindade, brota a Igreja “do lado de Cristo, morto na cruz” (SC 5) e do sopro do Espírito, em forma de água (batismo) e sangue (eucaristia). Essa realidade espiritual congrega “num só corpo” os filhos e filhas de Deus, comunidade de batizados, chamados a viver a fé, atentos à Palavra, alimentados pelo Pão, enriquecendo-se uns aos outros numa intensa vida de comunhão fraterna, em busca do conhecimento profundo do Senhor, mergulhados na história com seus desafios culturais e sociais, composta de homens e mulheres em suas angústias e alegrias.
Portanto, para ver os sinais da Trindade no cotidiano da vida é necessário colocar em movimento a tríplice dimensão: o eu – pessoa que experimenta o amor trinitário; o Outro – Trindade com quem é possível relacionar-se; e os outros – a quem se é chamado a servir como consequência dessa relação amorosa.
Essa é a lógica trinitária do amor, que nasce na fonte originária do coração da Trindade. Nela, a noção de pessoa se complementa com a noção da dádiva, e os bens recebidos tornam-se visivelmente bens partilhados. Na dinamicidade de receber e doar, evidencia-se o traço fundamental da relação de amor nos seres humanos quando se dá entre iguais, nas diferenças que lhes são próprias. Dos dois lados, seja o perdão da falta alheia, ou o descer para elevar o outro ao nível em que seja possível, o mútuo intercâmbio é em pé de igualdade e comunhão. Entregar os dons é comunicar e comungar.
O contrário disso é a lógica humana dos tempos atuais, herdeira da racionalidade moderna e da subjetividade pós-moderna, voltada para si mesma e sobrecarregada de ídolos e divisões, cultivando ódios e intolerâncias. Vai na contramão da comunhão existente entre o Pai, o Filho e o Espírito, que ensinam a originalidade de comunicar, expandir, alargar, estender, difundir, dilatar, espalhar.
A relação trinitária impulsiona a ir além dos preconceitos, fechamentos e limites, compreendendo que amar é verbo, ação continuada, impulso para sair do egoísmo e mergulhar na sofrida condição humana, conscientizando-se de que “quem ama dá e comunica o que tem ou pode a quem ama. Por sua vez, quem é amado dá e comunica ao que ama” [1]. A comunhão é a substância do amor, é graça, essência do Espírito Santo. Ela acontece no nível mais profundo, que iguala as duas partes na mesma responsabilidade de se doar, sendo fusão entre a ação trinitária e a ação humana.
Essa realidade configura a pessoa humana à Trindade, dando-lhe dignidade, que mesmo em meio às maiores dores, os traços da perfeição divina são visíveis, uma com a graça, outra com a força, outra com a inteligência, a fé, a bondade, a resistência, a sabedoria, a compaixão. Todas, sem exceção, são filhas amadas do Pai, criadas por amor “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26). Feitas para a comunhão.
Sendo assim, o amor inquieto deve então ser o selo da vida cristã, que não se conforma com este mundo, mas empreende todas as forças na esperança de vê-lo renovado, transformado (Rm 12, 2). Trata-se do dom de si mesmo que renuncia à centralidade do ego, ao mal-uso do poder, a mesquinhez da vaidade e se transfigura em amor espontâneo, gratuito, sem motivos ou interesses, oblativo, esvaziado de si, assim como Jesus que “esvaziou-se de sua divindade” (Fl 2,1-11) e se fez servo de todos. Solidifica-se em atitudes verdadeiras que devem reger a vivência dos dons recebidos. E toda ação tem destinatários concretos, palpáveis, feridos. Por isso, a especificidade da comunhão é traduzida em um agir ético, coerente e maduro, que fecunda os desertos humanos e diviniza-os, fazendo crescer e expandir esse amor que humaniza, resgata, aproxima, unifica, move, ama com paixão e ensina a arte da doação.
[1] Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola nº 231.
*Sandra Sousa é mestra em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.