A misericódia como chave de leitura da moral cristã
Por Maria Clara Bingemer
Finalmente veio à luz a tão esperada exortação apostólica pós-sinodal “Amoris Laetitia”, fruto do sínodo da família que mobilizou a Igreja do mundo inteiro. O papa Francisco fez questão de que o sínodo não fosse apenas o resultado de vários dias de discussão intramuros dos padres sinodais. Por isso, foi feito um levantamento nas dioceses do mundo inteiro. E no sínodo havia observadores e participantes representando os diversos estamentos eclesiais.
O que a comunidade eclesial tem em mãos é um verdadeiro documento sinodal. E a sinodalidade é a característica não apenas da reunião realizada em Roma, mas também do documento. Sente-se o desejo do pontífice que a assina de ouvir e respeitar a totalidade do que foi vivido naqueles dias de graça, busca e discernimento.
Seria temerário agora, no momento seguinte ao aparecimento do texto, pretender esgotar todos os aspectos de um texto tão rico.
Atenho-me a comentar apenas dois pontos que me parecem fundamentais: a alegria como perspectiva deste documento que segue o tom de todo o pontificado do papa Francisco e a misericórdia como chave de leitura para toda a moral cristã. Nas próximas semanas, pretendo comentar de forma mais profunda algumas das seções do documento.
Desde o início de seu pontificado, o papa Francisco tem repetido incansavelmente a primordialidade da alegria no cristianismo. E a apresenta como um dom do Espirito do Ressuscitado que dá aos discípulos a paz e a alegria. Assim, também como uma condição constitutiva da vida do seguidor de Jesus Cristo, que deve estar sempre impregnado da alegria do Senhor em todos os aspectos de sua vida, mas de maneira especial na missão de evangelizar.
Não por nada a encíclica programática deste Pontificado tem como título “Evangelii Gaudi” (A alegria do Evangelho) e ali o Santo Padre procura reforçar a importância desta tônica da vida cristã que nada nem ninguém pode retirar ou roubar. A mensagem última e definitiva de Jesus Cristo não é a cruz ou a morte, mas a alegria.
Esta alegria está presente no documento como um todo, desde o título “Amoris Laetitia” – A alegria do amor. A intenção da exortação apostólica é animar as famílias cristãs a viver o amor como um dom generoso e abundante de Deus, que só pode gerar alegria.
Ao longo do texto, pode-se constatar que não há ingenuidade nesta exortação à alegria. As crises, dificuldades e dores da vida em família são expostas com clareza e lucidez. No entanto, são chamadas a serem vividas com o sentimento de alegria pascal que deve predominar sobre toda dor e dificuldade.
O amor é uma experiência empolgante e plenificante, e como tal deve ser vivido. A família é lugar privilegiado para viver esse amor, já que em seu seio existem oportunidades de exercitar todas as formas humanas do amor: desejo, gozo, respeito, dedicação, abnegação, amor, carinho, cuidado, paciência e tantas, tantas outras mais. E isso se dá em todas as direções: dos esposos entre si, dos pais para os filhos, dos filhos entre si e com relação aos pais e na abertura dos lares ao mundo e à realidade, sobretudo às vítimas da injustiça e opressão de qualquer espécie. O amor na família, portanto, é uma boa notícia, um anúncio pascal para o mundo.
Se a alegria é a luz que banha o documento, a misericórdia é a chave de leitura para bem compreendê-lo e assimilá-lo. Aparece aqui bem claramente toda a preocupação e a insistência incansável de Francisco sobre a importância desta atitude cristã. Ser misericordioso, para ele, é sinônimo de ser cristão, pois Jesus Cristo é a misericórdia divina encarnada, e em sua vida, morte e ressurreição derrama essa misericórdia sobre todos aqueles e aquelas que encontra em seu caminho, tornando-os por seu Espírito fontes de misericórdia para todos.
Em várias ocasiões igualmente afirmou o papa a necessidade que percebe de a Igreja não usar um discurso duro e uma prática pastoral implacável para com as pessoas. Essas estão feridas, necessitam ser cuidadas, curadas, com ternura e misericórdia. Assim, o presente documento insiste para que, sem diminuir ou diluir o valor do ideal evangélico quanto à família, a misericórdia seja a perspectiva da ação pastoral para com ela. No nº 308, o papa fala em primeira pessoa dessa convicção profunda que lhe transborda do coração. E o faz citando justamente a exortação apostólica “Evangelii Gaudium” nº 45: Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar à confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, “não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada”.
Por isso, o acompanhamento das famílias deve ser feito com misericórdia e paciência, sempre inspiradas pela misericórdia do Senhor, que nos incentiva a praticar o bem possível. Afastando-se respeitosa e fraternalmente da moral casuística e algumas vezes rígida do passado eclesial, o bispo de Roma propõe aos pastores que adotem a misericórdia e a compaixão pelas pessoas, tantas vezes frágeis e vulneráveis. Exorta-os a evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. E cita em apoio a isso o próprio Evangelho, que exige que não julguemos nem condenemos. (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37).
Abre-se, portanto, uma nova etapa na história da moral cristã, que não privilegia a lei, mas a misericórdia. Que possamos realizar em nossas famílias essa conversão à misericórdia, que permite viver a alegria do amor.