A VOZ DO PASTOR – Fev/2019
JARDIM SAGRADO DE DEUS
Irmãs queridas, irmãos queridos, todos queridos por Deus:
Em todo ano repete-se o ciclo do Ano Litúrgico, o modo de a Igreja viver a eternidade dentro do tempo, celebrando os feitos salvíficos operados por Deus, através do Cristo Jesus. Nessa eternidade, com cara e jeito de tempo, vive-se no mistério do Cristo: da Encarnação a Pentecostes, do dia a dia à espera gloriosa do Senhor.
O Ano Litúrgico é um tempo repleto de simbolismo religioso; ele marca, de maneira solene, o ingresso de Deus na história humana. É o momento em que o Eterno teve tempo para os homens, uma espécie de explosão divina, na realidade do mundo criado. Desde que Deus apareceu por aqui, nunca mais fomos como antes,, nem seremos, porque nunca mais haverá um antes e um depois, só o agora decisivo de Deus.
É por isso que as celebrações do Ano Litúrgico não olham para o passado, comemorando a libertação divina, como se fosse uma espécie de sete de setembro. Nosso olhar se volta para o antes do passado e o além do futuro, na direção do eterno. E só quando conseguirmos fazer do passado e do futuro o hoje de Deus, nosso coração não sentirá mais saudade da eternidade. Já estaremos nela.
O coração do Ano Litúrgico é o Mistério Pascal de Cristo – a vida do organismo da Igreja. Se as celebrações do Ano Litúrgico são as artérias do corpo da Igreja, é o Sangue Pascal que corre nelas. Nelas palpitam as pulsações do Coração de Cristo, enchendo da vitalidade da Graça a vida dos cristãos.
Estamos vivendo o Ano C da Liturgia, o ano em que lemos São Lucas.
O evangelho de Lucas é considerado o mais atraente. Nele, Jesus é o Salvador enviado por Deus “para buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). É nele que a mensagem de Jesus ecoa e presentifica um Deus compassivo, defensor dos pobres, curador dos doentes, amigo dos que estão longe, talvez, perdidos.
Tradicionalmente, o texto desse evangelho é atribuído a um médico cristão, companheiro nas andanças de Paulo, chamado Lucas. Os exegetas concordam que foi escrito fora da Palestina, provavelmente em Roma, entre os anos 80 e 90. O autor se dirige aos cristãos que falavam a língua grega. Embora o livro seja dedicado a um certo Teófilo, não se faz ideia de quem seja. É provável que o significado do nome – Teófilo, amigo de Deus – indique que o texto tenha sido escrito para você e para mim, para todos os amigos de Deus de todas as épocas.
Somos, portanto, todos – os amigos de Deus – convidados a ler com atenção o que o grande amigo de Deus, Lucas, escreveu para nós.
A nota principal desse evangelho é a alegria. Ouvir Jesus nos dá prazer. Desde o primeiro convite feito a Maria para que a cheia de graça se alegrasse, passando pelo nascimento do Menino, às curas, à volta dos discípulos para Jerusalém, depois da Ascensão, é a alegria, a nota musical que toca como melodia, durante o evangelho inteiro. Não há quem não prenda a respiração ao ouvir Jesus declarar que vai se hospedar na casa de Zaqueu; não há quem não sinta a mesma alegria de Zaqueu,, ao ver o mestre entrando em sua casa (Lc 19,6).
Em tempos carrancudos ou vazios, como os nossos, precisamos mais que nunca dessa alegria.
Não é uma alegria qualquer. É a alegria de se sentir e se saber salvo. “Agora, Senhor, de acordo com a tua palavra, podes deixar teu servo caminhar em paz, porque meus olhos viram a tua salvação” (Lc 2,30). Também para nós, como para Simeão, não há como caminhar em paz, se aos nossos olhos e ao nosso coração não for dado saber e sentir que estamos salvos: salvos de nós mesmos, da confusão da nossa história e da nossa ansiedade.
Tudo para Lucas acontece hoje. O Menino nasceu hoje (Lc 2,11), hoje se cumpriu a palavra do profeta (Lc 4,21), hoje chegou a salvação à casa de Zaqueu (Lc 19,9), hoje o bandido preso à cruz verá o paraíso (Lc 23,43). Hoje, e sempre hoje. Porque o ontem não existe mais, e o amanhã só existe na folhinha pendurada atrás da porta. Hoje, sempre hoje, e agora. Porque não dá para esperar, a não ser no tempo da Esperança, a virtude teologal que confere tonalidade e brilho à Fé.
A Salvação que inunda de alegria, porque acontece sempre hoje e hoje sempre, não acontece porque somos bonzinhos, mas porque Deus é bom. O que Jesus revela na sua vida, em cada ato, em cada contato, em cada vão de olhar, e em cada gesto, que nunca é em vão, é tamanha misericórdia que não cabe no prato da balança da justiça. Bondade, perdão, graça… e tudo de graça: são as entranhas da misericórdia de Deus que vêm iluminar os que andam nas trevas e nas sombras da morte, para guiar nossos passos no caminho da paz (Lc 1,78). O velho Zacarias cantou os novos tempos. Nós vivemos nele.
Como o pai da parábola, que faz festa quando revê o filho perdido, como o pastor que procura a ovelha perdida e faz festa com os amigos, quando a encontra, como a mulher que acha a moedinha perdida e chama as vizinhas, porque não cabe em si de alegria, somos todos filhos, ovelhas e pequenas moedas de valor insignificante. Só Deus faria festa por nossa causa! Não tenham dúvida: Ele a fará.
Assim como o samaritano se aproximou do homem caído e machucado à beira do caminho (Lc 10,30), Deus também se aproximará de nós. De uma forma ou de outra, todos nos encontramos feridos à beira do caminho humano. Sejam quais forem nossos assaltantes, eles também nos arrancaram a roupa, nos cobriram de golpes e nos abandonaram semimortos de esperança, à beira desse caminho, sempre o mesmo. Precisamos de um Pai que derrame azeite e vinho em nossas feridas, que nos coloque sobre seu cavalo e nos leve sob sua proteção. Precisamos de um Pai que sinta nosso cheiro como se fosse perfume.
Só Lucas teve a sensibilidade de montar essas cenas. Lucas se antecipou à nossa época. Por isso, ele faz parte de todas as épocas.
Sejamos todos TEÓFILOS, amigos de Deus. Nosso amigo Lucas nos conduzirá nesse caminho, pelo qual ele mesmo passou, e por isso conhece bem.
A espiritualidade é o nosso jardim secreto. Somos todos, pessoas comuns, novos Adão e Eva, que buscamos esse jardim.
Que nossa retidão de vida e nosso sentido de solidariedade cultivem um jardim sagrado, onde Deus venha passear toda tarde. E quando Ele nos chamar pelo nome, que jamais nos escondamos de medo, outra vez.
Deixo-lhes meu carinho, minha bênção e meu pedido de orações.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói