A Voz do Pastor – Ignorar as escrituras sagradas é ignorar Cristo
Irmãos e irmãs: nós somos seres humanos porque olhamos as estrelas ou olhamos as estrelas porque somos humanos? Somos humanos fazendo uma experiência espiritual ou somos seres espirituais fazendo uma experiência humana?
São questões que poucos conseguem alcançar. Vamos perguntar a um deles o que ele nos tem a dizer.
São Jerônimo viveu muito tempo antes de nós (347-420). Atualmente, ele é conhecido apenas como padroeiro das secretárias, que festejam seu dia no mesmo dia dele: 30 de setembro. Mas ele fez muito mais. Jerônimo traduziu a Bíblia do grego antigo e do hebraico para o latim, e a sua tradução, chamada Vulgata, é ainda o texto bíblico oficial da Igreja. Ele é também um Padre e um Doutor da Igreja. Isso significa que o que ele ensinou, precisamos escutar.
Jerônimo nasceu num lugar muito desconhecido, e morreu em sua cela, próximo à gruta da Natividade, em Belém. Entre um fato e outro, a vida que viveu foi intensa.
São Jerônimo possuía uma cultura de dar inveja: foi escritor, professor, secretário, filósofo, teólogo, gramático, historiador, exegeta e doutor, como ninguém. Tendo herdado uma pequena fortuna, quis realizar o sonho de estudar. Viajou para Roma, procurou os melhores mestres, e passou uma juventude um tanto livre. Daí recebeu o batismo do Papa Libério, com 25 anos de idade, e conheceu a vida dos monges. Não pensou duas vezes: formou uma pequena comunidade religiosa para estudar a Bíblia. Jerônimo tinha um caráter desbravador e gostava de opções radicais. Foi para o Oriente e viveu anos no deserto da Síria, em jejuns e penitências tão rigorosas que quase o mataram.
Tendo de escolher entre uma vocação inata de escritor e o chamado à vida monástica, encontrou entre os dois extremos a saída ideal que traçaria o caminho da sua vida: seria um monge, mas um monge com dedicação total ao estudo, à reflexão, à obra da difusão da fé cristã. Foi nessa motivação que estudou hebraico, com esforço sobre-humano, e aperfeiçoou os conhecimentos do grego, para poder compreender melhor as Escrituras, direto na fonte das línguas originais. Jerônimo sempre quis beber água limpa.
Então foi chamado a Roma para ser secretário do Papa Damaso, dele recebendo a missão de verter a Bíblia para o latim. O Papa queria uma tradução da Bíblia mais fiel para servir de texto único à liturgia. Naquele tempo, existiam apenas traduções populares que criavam muita confusão. O trabalho de Jerônimo começado em Roma durou a vida toda. Nessa tradução, Jerônimo revela agudo senso crítico, amor sem limite à Palavra de Deus e riqueza de informações sobre a Bíblia.
Quando ele se desgostou das intrigas do círculo do poder, retirou-se para Belém, para viver como monge penitente até a morte, quase octogenário, sempre estudando a Palavra que dá sentido a todas as outras palavras.
Em tudo o que fez, Jerônimo pôs à mostra uma personalidade vigorosa, uma inteligência extraordinária, um temperamento forte. Escreveu muito. Sentia-se presente e engajado em todos os problemas do seu tempo. Viveu longe do mundo, mas sempre esteve plugado em tudo. O “Dia da Bíblia” acontece no último domingo de setembro, para ficar perto do dia dele. Jerônimo deixou escrito: “Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus, e quem ignora as Escrituras ignora o poder e a sabedoria de Deus: ignorar as Escrituras Sagradas é ignorar Cristo”.
O Papa Bento XVI falou assim dele: “É interessante ressaltar os critérios aos quais o grande biblista se ateve na sua obra de tradutor. Revela-o ele mesmo, quando afirma respeitar até a ordem das palavras das Sagradas Escrituras, porque nelas, diz, até a ordem das palavras é um mistério e uma revelação”.
Jerônimo tinha saúde frágil e isso mostra a força da Palavra na fragilidade humana. Nós também somos frágeis, somos caniços pensantes, como definiu Pascal. Sem a força do Alto, o risco de passar a vida revolvendo a lama é muito sério e, inclusive, atual. Jerônimo nos mostrou o caminho enxuto, longe da lama, do lixo e do mau cheiro que se acumulam, muitas vezes, ao longo da estrada humana.
A diferença entre um homem e um castor não está no que eles fazem: ambos constroem pontes. Mas só o homem inaugura, chama banda, corta fita, faz festa. Só o homem procura, encontra e dá sentido àquilo que faz. Foi esse o sentido que Jerônimo procurou perto da gruta de Belém. Foi esse poço de sentido que ele cavou na rocha da Sagrada Escritura para beber água pura.
Abraão contou estrelas. Jerônimo também, provavelmente, no mesmo lugar. Ambos tinham sede de Deus. Nós também temos sede de Deus. Nós também auscultamos estrelas. E acreditamos.
Acreditamos. Não tanto no deus dos filósofos ou dos sábios, que pode ser alcançado (até) sem fé. Nem no Deus dos teólogos, que (até) pode ser alcançado sem caridade. Mas no Deus dos santos – a Vida da nossa vida – alcançado por meio da graça e do amor. “Nele vivemos, nos movemos e somos” (At 17,28). Longe Dele… melhor nem falar.
Podemos viver com Deus, podemos viver até contra Deus, mas jamais sem Deus. Todo ateu é um convicto do seu ateísmo, todo homem de ciência é um crente fervoroso da cientificidade. Ateus, mesmo, são poucos. Homens de fé, de verdade, é provável que, também, existam poucos. É muito difícil ser ateu. É muito difícil viver por extenso as convicções de sua fé.
Que este mês da Bíblia nos aproxime da Palavra que dá sentido a todas as palavras e que faz nossa vida ter 5D: altura, largura, profundidade, temporalidade e transcendência. Sem esses 5D nos mantemos na rasura pífia de uma vida morna. E os mornos serão vomitados da boca de Deus.
A todos quero abençoar o desejo de conhecer a Palavra de Deus, onde a Vida vive e o Amor brota. Que Nossa Senhora nos auxilie com a luz do Alto.
Amém.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
Fonte: Arquidiocese de Niterói