A voz do pastor – Setembro

Publicado em 03/09/2013 | Categoria: Notícias |


 

 

  Lumen Fidei (1)

Simão, tu me amas? Apascenta os meus… Pastoreia os meus… (Jo 21,15s). Irmãos e irmãs, apascentar e pastorear – alimentar e conduzir – são as duas razões maiores do ministério confiado por Jesus a Pedro. Atendendo a essa confiança do Senhor e confiando nele, o papa Francisco nos presenteou com a sua primeira encíclica Lumen Fidei – A Luz da Fé. Nesses próximos 4 meses, em sintonia com o Ano da Fé e no clima da recente visita do papa ao Brasil, vamos comentar aqui esta encíclica. Nem de longe pretendo exaurir tudo o que ela contenha. Quero apenas colocar alguns pensamentos que me vêm do coração e da minha própria experiência de fé.

A luz da fé é a expressão com que a tradição da Igreja designou o grande dom trazido por Jesus. “Eu vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em Mim não fique nas trevas” (Jo 12, 46). À Marta, diante da morte de Lázaro, Jesus já havia dito: “Eu não te disse que, se acreditares, verás a glória de Deus?” (Jo 11, 40). Quem acredita, vê; vê com uma luz que ilumina todo o percurso da estrada, porque nos vem de Cristo ressuscitado, estrela da manhã que não tem ocaso.

Esta primeira observação do papa na Encíclica tem o valor de uma coluna de convicção num mundo inerte a valores e desesperado pela ausência deles. A pós-modernidade, inaugurada a partir de Nietzsche, nos deixou vazios, perplexos, desconfiados. Descobrimos que o mundo não é mesmo um quarto de crianças enfeitado de brinquedos. Isso já sabíamos. Mas nem por isso precisava acontecer de o mundo ser um lugar inóspito e desabitado de esperança, como querem os portadores do andor do desalento. Temos medo, sim. Ainda estamos trancados em cavernas; certo que modernas, certo que entupidas de recursos tecnológicos, mas amedrontados pelas nossas próprias incertezas de encontrar um caminho com alguma luz. Nesse mundo, esse é o papel da Fé: iluminar os caminhos.

Mas seria Uma luz ilusória?, pergunta o papa.

Já ouvimos muito essa objeção. Augusto Comte já dizia que a religião havia sido apenas a primeira etapa do desenvolvimento humano. Nietzsche, lembra a Encíclica, convidava sua irmã a arriscar, percorrendo caminhos novos num ganho de autonomia. “Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga”. Nietzsche desenvolveu toda uma crítica ao cristia­nismo, acusando-o de ter diminuído o alcance da existência humana, de ter espoliado a vida de novidade e aven­tura. Para o novidadeiro século XIX, a fé era apenas uma espécie de ilusão de ótica, uma barreira no caminho de homens livres rumo ao amanhã, era sinônimo de escuridão, um salto no vazio, expressão ainda usada quando eu era seminarista.

A Encíclica continua. Pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autônoma não consegue iluminar suficientemen­te o futuro. Este, no fim de contas, permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E, assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade gran­de, para se contentar com pequenas luzes que ilu­minam por breves instantes, mas são incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em cír­culo, sem direção.

Estas palavras tocam o mais profundo da nossa experiência. Tocam-nos ainda mais depois que conhecemos de perto o homem que as escreveu. O tempo todo ele nos tem mostrado, em gestos e palavras, a urgência de redescobrir e recuperar essa luz. A luz da fé é capaz de iluminar a existência humana. E é aí que se encontra a grande diferença. Para os herdeiros da tradição cristã, “a fé nas­ce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para cons­truir solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos novos e experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos abre a visão do futuro.” É fé, sim, mas carregada de amor.

Não se trata de uma fé qualquer. A fé a que nos entregamos é um dom sobrenatural, luz oriunda de uma memória basilar – a vida de Jesus – onde o amor de Deus se manifestou plenamente confiável, tanto que a ponto de vencer a morte. É fé, sim, mas vem carregada de amor.

A fé na ressurreição abre a confiança do futuro, “descerra diante de nós horizontes grandes e nos leva a ultrapas­sar o nosso eu isolado abrindo-o à amplitude da comunhão. Deste modo, compreendemos que a fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas. É precisamente desta luz da fé que quero falar, desejando que cresça a fim de iluminar o presente até se tornar estre­la que mostra os horizontes do nosso caminho, num tempo em que o homem vive particular­mente carecido de luz.” Nesse sentido, a fé cristã opera uma das maiores contribuições para a sociedade humana, preenche uma lacuna que sem ela se abriria numa ferida irremediável: a fé gera confiança em nós mesmos, redime o passado, cura o presente, abre a confiança no futuro.

Irmãos, irmãs: todo comentário exige sempre reportar-se ao texto. Se alguém ainda não leu, por favor, leia a Encíclica. É preciso ir ao texto, carregar o texto, abri-lo várias vezes, em momentos de estudo e em clima de oração. Afinal, não é mais Bergoglio que lemos. É Francisco que lemos: o bispo de Roma e sucessor de Pedro, aquele a quem o Cristo Senhor encarregou de confirmar os irmãos na fé: “Simão, eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça… e para que fortaleças os teus irmãos na fé” (Lc 22, 32).

Fiquem com a bênção de Deus. Até o mês que vem!

+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói

Fonte: Arquidiocese de Niterói



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