A Voz do Pastor – Maio 2019

Publicado em 08/05/2019 | Categoria: A Voz do Pastor Notícias |


 

O COMEÇO DE TUDO

 

Irmãs e irmãos:

“Terão de olhar para Aquele que transpassaram” (Jo 19,37)

O Cardeal Carlo M. Martini foi um homem admirável sob todos os aspectos. Uma de suas ideias que mais me comovem, no rastro de Santo Agostinho, é a de que a Bíblia inteira não é senão a narrativa da paixão de Deus pelo homem. Tomado de louco amor pelo homem, Deus se apaixona pela beleza de sua criatura.

A Paixão do Senhor constitui o ápice desse amor. Enquanto a Bíblia inteira conta o que Deus fez por nós, mostrando sua Face indiretamente, através de suas ações, a Paixão do Senhor narra o que Deus fez a si mesmo, por nós, face a face, sem qualquer véu. Preso à Cruz, Deus está definitivamente comprometido conosco. Todos os seus dons de antemão eram apenas a preparação do dom maior de si. Na Cruz, Deus executa esse dom.

“Não quero saber nada além de Cristo, e de Cristo crucificado” (1Cor 2,2). “Nele estão escondidos todos os tesouros de sabedoria e de ciência. Nele habita corporalmente toda plenitude da divindade” (Cl 2,2.9). Nele o Mistério de Deus se exprime definitivamente, como que espremendo, para fora de si, no mundo todo e no cosmo inteiro, a sua essência, para que se torne perceptível a todos o que ela realmente é: Amor Total.

É esse amor que nos salva do veneno que corrói as nossas instituições, veneno que escorre da mais antiga árvore do conhecimento. “Terão de olhar para Aquele que transpassaram” (Jo 19,37). É esse o antídoto do veneno. Parafraseando São João Crisóstomo: O que na árvore venceu, pela árvore foi vencido. Na árvore da Cruz termina a nossa fuga e finda a nossa mentira. “Ele me amou e deu-se a si mesmo por mim” (Gl 2,20). Essa é a verdade, não há outra. Essa é a cura, não há outra.

A Paixão é o arremate da Encarnação, é a decifração do Mistério de Cristo. Até que ponto Deus nos ama? Quem era Cristo? Quem Ele é?

O autêntico intérprete desse segredo, suspenso entre o céu e a terra, não foi Pedro ou João ou nenhum dos discípulos. Foi o centurião: o responsável direto pelo que aconteceu no Gólgota. “Verdadeiramente, Ele era o Filho de Deus” (Mt 27,54). O maior decifrador é também a maior incógnita. Nada sabemos do que ele foi, no que se tornou depois daquela tarde trágica. Ficaram apenas suas palavras, como um testemunho da mais eloquente experiência: a do sangue.

“Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem” (Jo 3,14). E “quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então, sabereis quem eu sou” (Jo 8,28). Porque “quando eu tiver sido levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).

A visão cósmica que João alcança do Mistério do Crucificado, como centro de atração da História e do Universo, antecedeu em 20 séculos as descobertas que hoje sabemos. O Universo se originou de uma singularíssima potência que, em determinado momento, explodiu, em contínua expansão de si mesmo, desdobrando-se de tamanho, mas, ao mesmo tempo, se atraindo sobre si mesmo, com uma força que imita a do amor, que só se iguala à do amor.

O amor é a revelação do sentido da existência humana, da existência do universo criado, e até, da existência de Deus. Cristo crucificado é a revelação desse amor – aquele em tom maior, o único que não engana, e que apesar de todos os paradoxos persiste, desde sempre e para sempre.

Presenciamos a revelação desse amor nos encontros do Ressuscitado.

O primeiro e o mais extenso é narrado por João, na manhã daquele Dia. “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde O colocaram” (Jo 20,2). Embora a frase diga respeito à Maria Madalena, o verbo no plural diz respeito a todos nós: nós é que não sabemos onde Ele está.

Não somos diferentes de Pedro e o Discípulo amado, que saem numa correria em busca do que não sabem, voltam ao túmulo, entram, nada encontram, nada entendem, e retornam para casa, num silêncio mortal. Foram atrás da morte. Só encontraram a morte.

Maria, do lado de fora, chora, e chorando inclina-se na direção do túmulo. “Por que você está chorando?”, anjos lhe perguntam. “Por que você está chorando?” – agora é Ele quem lhe repete a pergunta – “Quem você está procurando?”  Essa pergunta esclarece toda busca humana. Ela denuncia todo equívoco, todo desvio, toda insanidade.

Quem estamos procurando?

Maria Madalena representa a busca de cada um de nós, em direção a um Sentido Maior, que seja Senhor de nossas vidas, que nos ressuscite de nossa finitude e nos proporcione uma orientação global e definitiva. Estamos em busca de uma plenitude que não se acabe nem na dor, nem na velhice, nem na morte. A ansiedade dessa busca até as lágrimas não deixa de ser angustiante. Estamos atrás dos sinais de uma presença que nos ajude a perdoar o passado, mantenha a certeza no presente e a confiança no futuro. Essa busca se torna cada vez mais urgente na medida em que os sinais pareçam nos desiludir, quanto mais nos parece encontrar apenas o silêncio e o vazio, os mesmos que enganaram Pedro e o Discípulo.

Pedro, o Discípulo amado e Maria Madalena ainda não estavam abertos à novidade radical de Deus. Eles buscam a Deus no túmulo, no âmbito das coisas mundanas, de uma experiência a que estavam acostumados. Eles ainda não haviam permitido que Deus chegasse de fora dessa experiência, que supera todas as expectativas rasas do cotidiano.

Cristo Ressuscitado, Aquele que haviam crucificado horas antes, se manifesta a Maria com uma presença discreta que é, ao mesmo tempo, um apelo ao reconhecimento de si mesma. Ele a chama pelo nome – Maria! – e desde o íntimo ela se sente reconhecida. Ela, que não o havia reconhecido pelo olhar, é reconhecida por ele, na interioridade da Voz. “Eu vi o Senhor!” (Jo 20,18), ela vai dizer, depois.

Na sua busca, identificamos a nossa, os nossos cansaços e os nossos entusiasmos inesperados. Ainda hoje, podemos ouvir a mesma Voz chamando a cada um pelo nome. Nessas horas de iluminação interior, percebemos que o clarão pascal nos revela o sentido e o rumo da nossa existência, até daquilo que não tem sentido, até daquilo que perdeu o rumo.

Cristo é o começo.

Teremos de olhar para Ele. Teremos de olhar para aquele que transpassaram. Nele nos enxergamos, nele nos desvendamos, nele nos deciframos.

E se for preciso algum intercessor, que nos ajude a ver além das aparências, peçamos que aquele centurião, responsável direto pelos acontecimentos que nos salvaram, nos mostre o que ele mesmo viu.

Será, para nós, a antecâmara da Páscoa definitiva.

Que Maria, nossa Mãe, tome nossa mão, nossa mente e nosso coração, e jamais nos permita fugir dos pés da Cruz. Cristo é o começo. E é lá que tudo começa.

Santa Páscoa aos irmãos e irmãs do Ressuscitado!

+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói



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