A VOZ DO PASTOR – MAR2018
Irmãos e irmãs, queridos e queridas por Deus,
Na Quaresma, somos chamados a meditar e a vivenciar de perto a intimidade do mistério do Senhor. Somos sempre chamados, sim, mas chamados a quê? Basicamente, somos chamados a ficar com Ele.
“Jesus subiu ao monte, e chamou os que quis. E foram a ele. Então Jesus constituiu o grupo dos Doze, para que ficassem com ele e para enviá-los a pregar com autoridade…” (Mc 3,13).
“Permaneçam em mim e eu permanecerei em vocês. O ramo que não permanece unido à videira não pode dar fruto. Vocês também não poderão dar fruto, se não permanecerem unidos a mim. Eu sou a videira, vocês são os ramos” (Jo 15,4-5).
É essa a especificidade do nosso chamado, é isso que nos caracteriza como discípulos, e depois missionários: permanecer nele, viver por ele. Essa especificidade, o autor do quarto evangelho a deixou inscrita na Cruz, num momento de extrema solenidade:
“Quando crucificaram Jesus, os soldados tomaram o seu manto para eles e o repartiram em quatro partes, uma para cada soldado. Deixaram de lado a túnica. A túnica não tinha costura, era uma peça única, tecida por inteiro desde cima. Disseram uns aos outros: Não vamos repartir. Vamos tirar a sorte, para ver a quem cabe. Assim se cumpriu a Escritura, que diz: Repartiram o meu manto e sortearam minha túnica. Foram os soldados que fizeram assim” (Jo 19,23-24).
O momento do desnudamento é o momento da verdade. O momento de todas as dúvidas é o momento em que todas as certezas brilham com força irresistível. Ali, aos pés da Cruz, pela mão do gentio agressor, brilha a nossa especificidade. Esse momento gravado pelo autor bíblico, que a ele conferiu um parágrafo inteiro, não nos pode passar despercebido. O manto e a túnica falam de nossa especificidade, eu diria, quase gritam.
Vamos ouvi-los.
“Cães numerosos me rodeiam, um bando de malfeitores me envolve. Transpassaram minhas mães e meus pés, posso contar todos os meus ossos. Todos me observam e me encaram. Repartiram entre si as minhas vestes e sortearam a minha túnica” (Salmo 22,17-19).
O Salmo 22 reescreve Isaias 53. Há, ali, prenúncios de dois futuros gestos carregados de sentido em dois futuros despojamentos.
Em João 19,1-3 os soldados coroam Jesus de espinhos e o revestem de vermelho e de zombaria. Mas o que parecia vestição foi despojamento, despojamento de si pelo outro. O que era para ser agressão foi plenitude de demonstração amorosa. No trecho a seguir, de João 19,23-24, acontece o contrário: o que parece despojamento, transforma-se em vestição de expansão universal. Nunca Jesus esteve tão vestido de si como quando estava nu.
Nada é como pensamos! Nada como queremos!
Como os pensamentos de Deus não são mesmo os nossos!
Na Cruz, Jesus continua sendo o rei escarnecido, esvaziado do poder “desta ordem”. Ao que tudo indica, não lhe tiram a coroa de espinhos. A intenção do autor é, aliás, esta mesma: Jesus é rei na cruz. A cruz é o único lugar onde, verdadeiramente, se pode dizer que alguém é verdadeiramente rei.
Era costume dos executores repartirem o espólio do réu. Era sua paga: o réu lhes pagava a morte que lhe deram. O episódio da repartição começa e termina, mencionando os soldados. Paradoxalmente, são eles, ao mesmo tempo, os agentes da morte e os primeiros herdeiros da vida.
O manto já aparece no lava-pés (em Jo 13,4.12), quando o autor bíblico escreveu: “Depois de lhes lavar os pés, Jesus retomou o manto, reclinou-se e perguntou: Entendem o que acabei de fazer?” (Jo 13,12). Ali, ele retoma o manto, mas não há nenhuma menção de que tenha retirado o avental-toalha. Ele é senhor, sim. Mas um senhor-servo, de manto e avental.
O manto, que apareceu no lava-pés, vai reaparecer na hora de Pedro (Jo 21,7). O manto, símbolo do reinado (1Rs 11,30-31; 1Sm 15,27), em Jesus, o rei dos judeus, simboliza o seu reino. Os soldados estão dividindo o reino para si. O reino que seria do povo eleito, a partir dali se torna herança dos gentios, de todos. Doravante, todos serão o povo da eleição.
Contudo, o manto é a veste exterior, a veste de todos. Com a túnica, porém, a história é outra.
A túnica é a peça de roupa interior, colada ao corpo, colada à intimidade do ser. Sem costura, sem fissuras nem emendas, ela indica a unidade e a integridade do ser. A túnica não contrasta com a ideia do manto, mas a complementa.
Na descrição do autor do quarto evangelho, a túnica é costurada “por inteiro”, a unidade, e “desde cima”, a menção do Espírito, a força vital da unidade. Desde já pressentimos a presença do Espírito, até que ela exploda no ápice do verso 30: “E inclinando a cabeça, entregou o espírito”.
A túnica inconsútil é a intimidade da vida do Mestre. Não foi desmembrada, não foi rasgada. Foi sorteada para ver a quem cabia; só não se disse a quem coube. O manto é universal, cabe a todos, pertence a todos. Mas a túnica só cabe em quem realmente serve.
Percebem o que estou dizendo?
A todos cabe o Manto. O manto é o chamamento universal a fazer parte do Reino. Mas a alguns, em especial, cabe a túnica. A alguns, em especial, o chamamento é outro: alguns são chamados a aderir à intimidade dele. Vejam bem, aderir à intimidade dele já é instalar o Reino. Porque o Reino não é só dele, o Reino é ele.
Nessa aurora da Páscoa de 2018, desejo a todos um real desejo do manto e da túnica, desejo a todos a universalidade do Reino e a intimidade do Senhor.
Por vocês todos, com vocês todos, rezo a oração que, na Missa, antecede a comunhão – verdadeira pérola de intimidade, espiritualidade e adoração.
Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, que cumprindo a vontade do Pai e agindo com o Espírito Santo, pela vossa morte destes vida ao mundo: livrai-me dos meus pecados e de todo mal. Pelo vosso Corpo e pelo vosso Sangue, dai-me cumprir sempre a vossa vontade e jamais separar-me de vós.
A todos desejo uma santa Páscoa, na intimidade do Senhor, razão maior da Igreja, única razão da vida que vivemos.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói