A Voz do Pastor – Nov/2018
A força das águas
Queridos irmãs e irmãs,
As chuvas chegaram trazendo a força das águas e das enxurradas.
Quando as enxurradas descem, arrastam entulho, detrito, galhos secos, latas vazias, papel atirado à rua, lixo e sujeira, muita sujeira. Seria ilusão esperar que as enxurradas fossem limpas. Elas só seriam limpas se as ruas fossem limpas. Infelizmente, isso não acontece. Não se admirem se as enxurradas arrastem o resto de tudo o que foi deixado pelo caminho.
Elas denunciam os restos da nossa precariedade, o que fazemos e o que deixamos ao acaso. As enxurradas expõem a céu aberto os nossos abandonos, falam sobre nós e contam quem somos. Quando as nuvens desabam, nossas histórias descem com a força das águas, arrastadas pelas enxurradas, imperiosamente.
Nos últimos dias, enfrentamos uma enxurrada de palavras, intenções e gestos de desmedida impiedade. Nem tudo foi limpo. Nada foi poupado. Ninguém saiu ileso. Como acontece nas enxurradas, toda sujeira ficou exposta, sem nenhum limite ao senso de pudor. Antes que os resultados viessem, antes mesmo de saber quem tinha ganhado, já sabíamos quem havia perdido: todos perdemos, todos nós perdemos.
Tal como nas guerras, onde não há vencedores, os últimos acontecimentos transformados em arena de guerra não tiveram vencedores, só perdedores. Tudo o que na sociedade foi esgarçado, aos limites da intolerância e nos exageros da discórdia, só a muito custo será restaurado. As instituições se dividiram, e perderam séculos de constituição. As famílias se dividiram, e perderam décadas de amor. Os amigos se dividiram, e perderam vidas inteiras de camaradagem. Foi tamanha a sujeira da enxurrada, que só a água cristalina do amor e do perdão derramada sobre a terra enlameada conseguirá lavar a contaminação das intenções.
Depois de todas as palavras mal pronunciadas, teremos de nos lembrar que a língua dos homens e dos anjos não é suficiente, a menos que seja acompanhada da linguagem do amor. A voz de quem não tem amor não passa de lata barulhenta.
Depois de toda ação inconveniente, teremos de nos lembrar que nenhuma fé capaz de mover montanhas será restauradora, a menos que haja amor. Quem não tiver amor, nada será.
Passadas todas as ambições desmedidas, é preciso lembrar que ainda que alguém reparta todos os seus bens e entregue seu corpo às chamas, sem amor, nada disso é capaz de recompor uma unha fraturada.
Só o amor repõe o dano causado pelas enxurradas. Só o amor cura as feridas.
O amor é paciente e prestativo, não é invejoso nem se infla de orgulho. O amor não falta com o respeito, não é interesseiro, não se irrita nem planeja o mal. O amor tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
Tudo conhecemos em parte, e só quando chegar a perfeição é que as parcialidades desaparecerão. Mas quando ficamos longe dos nossos ideais, a ponto de os perdermos de vista, a parcialidade das emoções e das meias-verdades se impõe como próteses de membros amputados. Mas lembrem: toda parcialidade excludente e polarizada nasce dos mesmos sentimentos contraditórios que nos habitam. São eles que distorcem um olhar plano e pleno sobre aquilo que esperamos de nós.
Se agora vemos, como num reflexo distorcido, é porque trazemos um espelho quebrado na alma. Se agora vemos as partes, e nos digladiamos por elas como se fossem um todo imaginário ideal, é porque ainda não nos conhecemos por inteiro.
Quando as chuvas passarem e as enxurradas deixarem para trás seu rastro de lama, só o amor, o único sentimento total em meio à parcialidade dos instintos, poderá lavar a sujeira esparramada, curar a ferida aberta e preencher todo abandono.
Um enfermeiro que trabalhava num hospital para crianças, ficou trabalhando até tarde, justo, na véspera do Natal. Fogos já estalavam e iluminavam o céu, quando ele pôde ir embora para casa. Ao percorrer pela última vez a enfermaria, sentiu passos a segui-lo, passos de algodão. Virou-se e viu que uma das crianças internas caminhava atrás dele. Na penumbra, ele reconheceu um solitário menino internado. Reconheceu a cara marcada pela morte.
Então, ele se aproximou daqueles olhos que pediam desculpas. O menino encostou-se à sua mão, e sussurrou: Diga a… Diga a alguém que… que estou aqui.
Somos como aquele menino doente e abandonado, que nesse momento, vive num interminável corredor solitário, onde a noite o acompanha e o medo o persegue. É com um fio de voz que ele se ergue no silêncio para dizer: diga a alguém que… que estou aqui. Sempre há alguém.
Há momentos que são como o ramo de oliveira que chega depois do dilúvio.
Diga a alguém que… que estou aqui é a melhor metáfora que nos representa nesse momento fragmentado. Somos o que nos tornamos: insuficientes, limitados, imperfeitos, toscos, balbuciantes, rudimentares. Contudo, nos intermináveis corredores solitários da vida, algum fio de voz humana se ergue para dizer a Deus que ainda estamos aqui. Sempre há Deus. Essa é a condição de jamais perder a esperança.
Que esse momento nos traga algum ramo de oliveira, que sempre chega depois do dilúvio.
Queridos irmãos e irmãs,
Saímos de uma noite doente, com um sabor de contaminação e enfraquecimento na alma. O corpo social se retrai e dói como se estivesse febril. Mas essa é a hora da reconstrução e da esperança.
Essa é a hora de lavar a lama das enxurradas, limpar a sujeira e seguir em frente. Qualquer que seja a realidade a enfrentar, nós a olharemos com o olhar que afugenta o medo.
Olhe para sua família dividida: esta é a sua família. Ame-a. Olhe para sua comunidade dividida: esta é a sua comunidade. Cuide dela. Olhe para sua nação dividida: esta é a sua nação. Ela precisa de você. Esqueça tudo o que ficou para trás, e não tenha dúvida: só há uma força capaz, só o amor.
As chuvas chegaram.
Deixemos que elas nos lavem e nos mostrem o que há de melhor em nós. Não permitamos que a força das águas destrua o que tanto custou a ser edificado. Rezemos para que haja sementes suficientes para replantar os terrenos por onde o trator passou.
Desejo de todo coração que a glória de Deus, que habita as alturas, se manifeste na paz dos corações dos homens e mulheres de boa vontade. Amém.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
Fonte: Arquidiocese de Niterói