A Voz do Pastor – nov 2020
A ATUALIDADE DOS SANTOS
Queridas irmãs e queridos irmãos:
Nos primeiros dias de novembro celebramos Todos os Santos e Todos os Fiéis Defuntos, ou seja, aqueles que, em suas próprias circunstâncias e adversidades de vida, foram fiéis à mensagem operante do Evangelho em toda sua plenitude.
Mas o que é a mensagem cristã? Como ela deve ser trazida ao nosso tempo? Como fazer para tornar esta mensagem ouvida e aceita neste século que, nem bem chegado, revelou-se herdeiro de todas as mazelas dos séculos anteriores? Como o Evangelho pode ser anunciado? Haverá quem ouça e se importe?
Comunicar o Evangelho significa colocá-lo diante das pessoas, até que elas estejam prontas para decidir a favor ou contra ele (Paul Tillich). Não significa conhecimento, mas decisão; até para conhecê-lo é preciso decidir-se por ele: se será aceito ou rejeitado. Tudo o que aqueles que comunicam o Evangelho podem fazer é tornar possível uma genuína decisão baseada sobre compreensão e participação.
Inclusive a minha e a sua.
Tendo a Parábola da Semente como pano de fundo, encontramos pessoas que rejeitam o Evangelho, embora sem nenhuma autoridade para tanto, e outras que nunca conseguiram fazer uma genuína decisão por ele, pelo simples motivo de que o Evangelho nunca lhes foi propriamente anunciado. Em outros casos, o Evangelho chega às pessoas como um hábito, costume ou contrato social, coisas essas que o Evangelho nunca deveria ser, não acham?
Repito: comunicar o Evangelho significa tornar possível uma decisão, a favor ou contra ele, mas jamais indefinida, insuficiente ou morna. “Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente. Melhor seria que você fosse frio ou quente! Assim, porque você é morno, nem frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca” (Apocalipse 3, 15-16).
A questão seguinte é ainda mais urgente: onde estão vivendo as pessoas para quem devemos comunicar o Evangelho, de tal forma que sejam capazes de tomar uma decisão genuína, ou seja, pra valer?
Certamente, não há uma resposta, muito menos, uma resposta simples. Mas certamente todas essas pessoas participam da existência humana, estão aí, cruzamos com elas nas paradas dos ônibus, nos supermercados e, até, nas igrejas.
Por participarem da existência humana, vem implícito que elas têm angústias, são finitas, sujeitas ao acaso e, um dia, também vão morrer. Significa que sofrem com o próprio sofrimento e, também, com o dos outros, e que se alegram com suas conquistas com a mesma intensidade com que celebram as conquistas dos outros, sobretudo, quando eles lhes dizem respeito de forma proximal.
Então, se você, meu irmão e irmã, nesta Arquidiocese, pretende ser o anunciador do Senhor Jesus, é preciso, antes de tudo, que a semente e o terreno, o Evangelho e a quem ele será anunciado, sejam anunciados e preparados como proposta de renovação da vida.
Foi isso que os santos fizeram, cada qual no seu tempo, com suas necessidades e expectativas, e sobretudo com anseios absolutos de conhecer a Deus, anseios tão próprios e inerentes ao coração humano, que rompem com outros paradigmas, inclusive, os de felicidade e prazer imediatos.
Que Evangelho, então, teremos a anunciar a essas pessoas?
Um missionário da China, depois de 30 anos de ministério, dizia que naquele momento, e depois de tanto tempo, ele “apenas” havia começado a compreender os elementos da cultura daquele país, no mínimo, diferente. Paulo de Tarso fez isso: conheceu e participou da cultura do seu tempo, mastigou a mensagem e devolveu, como os pássaros fazem com os filhotes, de um modo tal que os Romanos receberam o que cabia aos Romanos, e os Gálatas receberam o que devia aos Gálatas.
Mas a grande dificuldade, de hoje, não é adaptar o Evangelho às mentalidades, não é a rejeição e a infertilidade do Evangelho junto a grandes setores da sociedade como resposta às suas indagações, mas o fato dessa mesma sociedade não indagar mais sobre as questões para as quais o Evangelho oferece respostas claras e decisivas. Se a sociedade humana não indaga mais sobre suas questões é porque, talvez, esteja tão narcotizada de seus próprios produtos que não faça mais diferença fazer a diferença. Se não somos nem muitos nem um, corremos o risco de virar massa amorfa, insípida, inodora e morna, pronta a ser vomitada, sem nenhuma diferença do restante.
Quem melhor definiu o papel dos santos foi a constituição dogmática Lumen Gentium (Luz dos Povos), um dos mais importantes textos do Concílio Vaticano II. Por inteiro, ela se ocupou da natureza e da constituição da Igreja, não só enquanto instituição, mas como Corpo Místico de Cristo. O texto definitivo da Constituição Lumen Gentium foi submetido à votação no dia 19 de novembro de 1964, com mais de dois mil votos a favor e apenas 3 votos contra. Em seguida, o Papa Paulo VI a promulgou, solenemente.
Segundo este histórico documento, todos os estados de vida, da criança recentemente batizada, ao adulto, ao missionário e ao papa, todos são chamados à santidade. Mas em que consiste a santidade? Podemos pensar nela em três ângulos: santo é quem alcançou a perfeita identificação com a vontade de Deus, quem alcançou a perfeição da caridade e quem alcançou a plena configuração a Jesus Cristo.
Esses são os santos que você e eu podemos ser. Não é fácil, mas não é impossível. Pelo contrário, se já foi possível para outros, por que não para nós? Se já foi possível ontem, por que não hoje? Por que não sempre?
O que há de sempre atual na história humana é a angústia. Pois, então, aqueles que responderam a esse sentimento visceral com seu próprio engajamento de vida, esses são atualíssimos. Os santos são a atualidade da Igreja. Como um organismo anêmico perde o brilho da pele, sem eles, a Igreja perderia o vivo da cor.
Meu maior desejo não é que os santos desçam dos altares e saiam das igrejas, mas que cada vez mais andem pelas ruas e, no banco das praças, nos falem de Deus e do absoluto, sem os quais a vida não merece esse nome.
Meu maior desejo não inclui, necessariamente, a nossa própria canonização. Se for para glória de Deus, que Ele seja louvado eternamente por nossas vidas. Certamente, não seremos canonizados. Mas seremos santos: seremos o perfume de Deus na Terra.
E, quando as pessoas passarem por nós, o coração delas dirá que algo diferente passou pelas suas vidas, algo com sabor eterno, com som, cor e jeito que não permitem confundir: ali esteve alguém, no mínimo diferente. Um santo? É o que nossa fé espera, é o que esperamos.
Quando o mundo não for mais o mesmo depois que passarmos por ele, quando se tornar um pomar dourado, então, ele terá realizado sua vocação. Quando realizarmos a nossa, à beira dos caminhos brotarão fontes e na vida das pessoas crescerão flores, pelo simples contato com a nossa alma.
Enfim, será o Reino de Deus na Terra.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói