A VOZ DO PASTOR – nov/2017
PRIMEIRO DIA MUNDIAL DOS POBRES
O amor não admite álibis
“Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18). Estas palavras do apóstolo João exprimem um imperativo de que nenhum cristão pode prescindir. A importância do mandamento de Jesus, transmitido pelo “discípulo amado” até aos nossos dias, aparece ainda mais acentuada ao contrapor as palavras vazias que, frequentemente, se encontram na nossa boca, às obras concretas, as únicas capazes de medir verdadeiramente o que valemos. O amor não admite álibis: quem pretende amar como Jesus amou, deve assumir o seu exemplo, sobretudo quando somos chamados a amar os pobres.
Queridos irmãos e irmãs,
Com estas palavras fortes, o Papa Francisco inicia sua exortação para o PRIMEIRO DIA MUNDIAL DOS POBRES, a ser celebrado em 19 de novembro próximo.
Gostaria de comentar com vocês alguns tópicos.
Mas preciso antes, observar o índice alarmante de pobreza. A ONU adverte que a pobreza afeta mais de 2,2 bilhões de pessoas ao redor do planeta. Não deixa de ser um escândalo que, pela primeira vez na História, tenhamos alcançado as condições de erradicar a fome com a conta de 1/3 da população mundial em estado de pobreza. Cerca de 1,5 bilhão de pessoas sofre de pobreza multidimensional; em 91 países em desenvolvimento, passam por privações nas áreas de saúde, educação e padrões básicos de vida. Entre os afetados pela pobreza, 850 milhões têm crise de fome crônica.
Estes dados refletem uma diminuição do índice de desenvolvimento humano (IDH) em todas as regiões. Estes números alarmantes são atribuídos às crises financeiras, oscilações dos preços da comida, desastres naturais e conflitos violentos.
“Quando um pobre invoca o Senhor, Ele o atende” (Sl 34/33,7). A Igreja compreendeu, desde sempre, a importância de tal invocação – diz o Papa.
Já nas primeiras páginas dos Atos dos Apóstolos, Pedro pede para se escolher sete homens que assumam o serviço de assistência aos pobres. Esse foi o cartão de visita com que a comunidade cristã se apresentou ao mundo: o serviço aos mais pobres. A vida dos discípulos de Jesus devia exprimir uma fraternidade, numa solidariedade que correspondesse ao ensinamento principal do Mestre, que tinha proclamado os pobres bem-aventurados e herdeiros do Reino (Mt 5,3).
Houve momentos em que os cristãos não escutaram profundamente este apelo, deixando-se contaminar pela mentalidade mundana. Mas o Espírito Santo não deixou de os chamar a manterem o olhar fixo no essencial. Ele fez surgir homens e mulheres que ofereceram a sua vida ao serviço dos pobres.
Dentre todos, destaca-se o exemplo de Francisco de Assis, que foi seguido por tantos outros homens e mulheres santos, ao longo dos séculos. Não se contentou com abraçar e dar esmola aos leprosos, mas decidiu ir a Gúbio para estar junto com eles. Ele mesmo identificou neste encontro a viragem da sua conversão. O testemunho dele mostra a força transformadora da caridade e o estilo de vida dos cristãos.
O Papa pede para não pensar nos pobres apenas como destinatários de uma obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz. Estas experiências, embora válidas e úteis, deveriam se abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida. A oração, o caminho do discipulado e a conversão encontram, na caridade e na partilha, a prova da sua autenticidade evangélica. Não só aqueles que dizem Senhor, Senhor, entrarão no Reino (Mt 7,21).
O Papa usa palavras fortes, quando diz que Se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia. O Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis.
E continua: Portanto somos chamados a estender a mão aos pobres, a encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los, para fazê-los sentir o calor do amor que rompe o círculo da solidão. A sua mão estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas certezas e comodidades e reconhecermos o valor que a pobreza encerra em si mesma.
O Papa tem uma clareza solar quando trata concretamente das questões ligadas à pobreza mundial. Há uma dificuldade de identificar a pobreza onde ela está. Mas ela nos interpela todos os dias, com os seus inúmeros rostos marcados pelo sofrimento, pela marginalização, pela opressão, pela violência, pelas torturas e a prisão, pela guerra, pela privação da liberdade e da dignidade, pela ignorância e pelo analfabetismo, pela emergência sanitária e pela falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e pela escravidão, pelo exílio e a miséria, pela migração forçada. A pobreza tem o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco que se é constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social, da miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!
Triste é constatar que cada vez mais a riqueza descarada se acumula nas mãos de poucos, frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração ofensiva da dignidade humana.
Daí o Papa ligar o Jubileu da Misericórdia ao Dia Mundial dos Pobres, dando às comunidades cristãs a oportunidade de se tornarem o sinal concreto da caridade de Cristo. Ele diz que esse dia trará um elemento requintadamente evangélico: a predileção de Jesus pelos pobres.
O Papa convida a Igreja e os homens e mulheres de boa vontade a fixar o olhar em todos os que estendem as suas mãos, invocando ajuda e pedindo nossa solidariedade. São irmãos e irmãs, criados e amados pelo único Pai Celeste. É preciso reagir à cultura do descartável e do desperdício e assumir a cultura do encontro. Ele dirige o convite a todos, independentemente da sua pertença religiosa, para se abrirem à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, sinal concreto de fraternidade. Deus criou o céu e a terra para todos. Foram os homens que ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão.
Diante da pobreza, existem alguns sintomas sociais de desesperança congênita: indiferença, egoísmo, embotamento da sensibilidade ao sofrimento do outro, muros erguidos e autorizados como medidas delirantes de proteção, desconsideração pelas raízes históricas de onde se originou esse tipo de coisa, atenção exagerada pelas urgências presentes. Tudo isso legitimado por discursos do senso comum, pela eficácia da mídia, da oratória política esvaziada da ética, e até de uma distorcida cientificidade acadêmica.
Os pobres conservam embriões de esperança.
Eles tentam não se deixar iludir por oportunidades momentâneas sem nenhuma transcendência, nenhuma perspectiva de futuro. Tentam não camuflar sua dor, num hedonismo grosseiro e imediatista, que já deu provas de sua insuficiência. A pobreza é dor. A dor é universal. Mas a pobreza também pode ser alegria. E a alegria também é universal. Quando seremos universais na dor e na alegria dos pobres?
Essa é uma questão que toca o íntimo da experiência cristã.
Somos discípulos de um Mestre que não tinha onde repousar a cabeça, e não teve lugar no mundo, nem para chegar nem para ficar nem para partir. Não seria essa a sua grande proposta aos seus seguidores? Não seria essa a prova de fidelidade? O seu completo abandono ao Pai, ao mesmo tempo em que exprime a sua pobreza total, torna evidente a força deste Amor, que O ressuscita para uma vida nova no dia de Páscoa.
Na direção daquilo que o Santo Padre nos aponta, o Dia Mundial do Pobre não é o dia da assistência social nem da benemerência cristã. É o dia de repensar nossas origens e nossa razão de ser. Quem seremos para o mundo?
O Dia Mundial do pobre põe em xeque a nossa identidade enquanto discípulos. Colocado antes do Dia do Cristo Rei, evidencia que a realeza do Senhor nada tem a ver com coroas e cetros, como a arte e a piedade popular o têm idealizado. Sua realeza não é a de quem tem, é a de quem não precisa ter. Se o ter é a condição de felicidade de nossa cultura, este Dia chega em boa hora para redefinir os conceitos de cultura e felicidade. Que este Dia nos oriente a abrir novos caminhos.
Que este novo Dia Mundial se torne, pois, um forte apelo à nossa consciência crente, para ficarmos cada vez mais convictos de que partilhar com os pobres permite-nos compreender o Evangelho na sua verdade mais profunda. Os pobres não são um problema: são um recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho.
Que a Virgem Mãe de Cristo e da Igreja, que teve o Tudo em tal monta que não fez questão de outra razão, dirija nosso olhar para os que nada têm. Se ela abrir o nosso coração, ele não se fechará de novo sobre si mesmo, jamais.
Recomendo-me às suas orações. Deixo-lhes meu carinho e minha bênção.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
Fonte: Arquidiocese de Niterói