A Voz o Pastor – SET/2018

Publicado em 01/09/2018 | Categoria: A Voz do Pastor Notícias |


Um estrado para nossos pés

 

Irmãos e irmãs, queridos por Deus,

Iniciamos o mês de setembro, o Mês da Bíblia. Ela é o terreno onde fincamos os nossos pés.

Neste Mês da Bíblia leremos o Livro da Sabedoria. A aposta é a de que descubramos o Livro da Sabedoria.

Com o Livro da Sabedoria, encontramo-nos já nos limites entre a Primeira Aliança e a Segunda Aliança, o momento fundamental do diálogo entre o judaísmo e a cultura grega. O Livro da Sabedoria, escrito na língua grega, é um bom predecessor da Nova Aliança; a língua lhe dá esse tom de universalidade. O fato de ele ter sido escrito em grego desacredita a possibilidade de ser atribuído a Salomão. Essa atribuição se deve ao fato de a tradição judaica situar Salomão na origem do gênero literário sapiencial, e fazer dele o sábio por excelência (1Rs 3,5-12).

Certamente, esse livro é da lavra de algum autor anônimo muito distante de Salomão, no tempo e no espaço. Sabemos, pelos indícios literários, que ele foi escrito em Alexandria, no Egito, aproximadamente no ano 50 AC. Em Alexandria, residia a maior comunidade judaica da época, fora da Palestina, uma espécie de Nova York do mundo antigo. Como fruto desse ambiente, o Livro da Sabedoria vem marcado pela forte influência cultural do pensamento grego. Tamanha é essa influência, que a Bíblia hebraica não o reconheceu entre os seus escritos.

Naqueles dias, Alexandria passara a ser administrada por Roma; os judeus perderam seus privilégios, aumentaram a pobreza e a indigência. Para preservar a identidade, a comunidade judaica, longe de Jerusalém e do Templo, se organizou ao redor da Palavra, da Lei e da Memória. É sempre assim!

O autor, no entanto, conhecia a História do seu  povo, marcada pela fé num Deus sempre presente e pronto a intervir – o que não fazia parte, de forma alguma, do jeito grego de entender a História. Por outro lado, ele sente forte atração pelas filosofias helenísticas e a influência que as diversas religiões exerciam na vida dos seus irmãos de raça e fé.

Por isso, tenta estabelecer um diálogo entre fé e cultura gregas para sublinhar que a sabedoria, que brota da fé e conduz a vida dos israelitas, é superior à que inspira o modo de viver dos habitantes do seu mundo.

Neste livro, o autor tem dois destinatários: os judeus de Alexandria, perseguidos pelo paganismo do ambiente, e os próprios pagãos, sobretudo os intelectuais helenistas, abertos à cultura hebraica. O autor nutria a esperança  de eles serem convertidos ao Deus de Israel. Daí o relevo especial dado à polêmica contra a idolatria.

Naquela época, muitos judeus eram tentados a seguir um caminho paralelo ao que a Escritura aponta – o“caminho dos ímpios” – e a renegar a sua fé. O fato é que eles viviam em situações que nosso conforto moderno não costuma experimentar: perseguições pelo ridículo a que eram sujeitos, por serem minorias, e a vida fácil, que os alexandrinos levavam em contraste com as exigências apontadas pela Lei mosaica. Esses eram os “ímpios”.

Mais que uma categoria ou classe de pessoas, esses “ímpios” – em contraposição aos “justos” ao longo do livro – personificam um estilo de  vida oposto ao que deveria constituir o estilo de vida do judeu piedoso e justo. Esse contraponto aparece em três sentidos bíblicos do conceito de justiça: como virtude da equidade, dar a cada um o que lhe pertence; como cumprimento perfeito da vontade de Deus; e como força ou ação de Deus, que nos livra do mal. É a justiça que nos aproxima de Deus e da sabedoria.

O tema de fundo é sempre a justaposição entre  duas mais antigas questões: justiça e felicidade. Como ser feliz? Melhor: como ser justo e feliz?

O autor resolve esse problema aludindo à retribuição para os justos, ainda que em outra vida. Aquele era um ambiente cultural não apenas hostil, ele também apresentava um estilo de vida materialmente atraente; era necessário dar razões fortes em termos racionais e vitais, para que a Fé não aparentasse uma proposta de vida inferiorizada, própria das minorias culturais. É por isso que o autor conecta conhecimentos da Bíblia e da filosofia grega. Numa palavra, ele era um homem do seu tempo. Faz toda diferença!

A ideia teológica fundamental deste livro é a personificação da sabedoria divina.

Para os gregos, influenciados pelo Estoicismo, fundado não muito tempo antes, a sabedoria era um meio para chegar à contemplação divina. Já para o autor, ela é uma proposta existencial, um Alguém presente em toda a vida e que preside à vida toda. Essa sabedoria é reflexo do desígnio de Deus e não do esforço humano; ela partilha da essência da vida de Deus, está associada a todas as suas obras e tem a ver com o seu Espírito. A sabedoria é um modo da revelação do Deus que atua na História de Israel e no mundo criado. Ela prefigura a sabedoria do Criador,que culmina em Jesus Cristo, a própria Sabedoria de Deus.

“Os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria. Nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para as nações. Para os que são chamados, judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. Pois a loucura de Deus é mais sábia que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1Cor 1,22-25).

Realmente, o Livro da Sabedoria pode ser a grande descoberta do Mês da Bíblia, uma descoberta que vale uma vida. Afinal, não é atrás disso que todos estamos? um lugar firme, um estrado para os pés, cansados, desiludidos, mas sempre prontos a recomeçar?

Aqui é o estrado para os teus pés, que repousam aqui, onde vivem os mais pobres, mais humildes e perdidos.

Quando tento inclinar-me diante de ti, a minha reverência não consegue alcançar a profundidade onde teus pés repousam entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.

O orgulho nunca pode se aproximar desse lugar onde caminhas com as roupas do miserável entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.

O meu coração jamais pode encontrar o caminho onde fazes companhia ao que não tem companheiro entre os mais pobres, mais humildes e perdidos (Rabindranath Tagore).

Esse é o estrado onde apoiamos nossos pés.

Desejo a todos um iluminado Mês da Bíblia, com muitas bênçãos, descobertas e redescobertas.

 

+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói

 

Fonte: Arquidiocese e Niterói



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