Bem aventurados os que crêem sem terem visto!
Liturgia da Missa – Reflexão sobre a Mesa da Palavra
Segundo domingo da Páscoa – Ano A
O alpinista imprevidente escalara solitário a montanha. Embalado pela conquista permanece mais do que o tempo devido no topo. A noite o alcança em meio à descida. Um movimento em falso e vem a queda. Muitos metros abaixo um puxão fortíssimo estanca a caída no precipício. Vê-se então balançando no vazio. No escuro pega o rádio e clama por socorro. Escutando-o pedem que pisque a lanterna para o identificarem nas escarpas. Ao acender a luz os bombeiros o vêem e, melhor ainda, observam aliviados que está a, no máximo, dois metros de um platô. A ordem então vem assertiva. “Já o vimos, mas não temos como chegar até você durante a noite. Corte a corda e proteja-se do frio. Ao amanhecer subiremos para resgatá-lo”. Madrugada gelada os bombeiros sobem e o encontram pendurado e congelado. A menos de dois metros do chão.
Nos domingos da Páscoa encontraremos na Liturgia algumas aparições do Senhor, a pregação dos discípulos após a ressurreição, bem como a vida nas primeiras comunidades.
Nesse segundo domingo, o Evangelho vem nos falar da fé do cristão na Ressurreição. Apresenta-nos Tomé como uma espécie de “representante” de todos os crentes, desde o começo do cristianismo, até nós todos dois mil anos depois. O Ressuscitado, que não é outro senão o Crucificado, vem ter com seus discípulos. Esses, amedrontados, encontram-se trancados pelo receio dos judeus.
Tomé se recusa a crer. Tem a necessidade de ver primeiro, para depois assumir a sua fé. Há uma expressão bem comum e que mostra bem esse dilema de Tomé (que como espelho de todo crente, é também nosso). Trata-se da frase: “é preciso ver para crer”.
Notemos que ela é falsa. Afinal de contas ver e crer são realidades bem distintas. Caso esteja vendo, óbvio que não precisarei crer. Já, se tenho fé é porque não consigo enxergar aquilo no qual acredito. Ter fé no que se tem confirmado pelos sentidos da razão, é crer no que está patente.
A fé vai muito além dos sentidos. Ela os ultrapassa e segue caminhando em paralelo com a razão. Misturá-las é arrumar confusão. Podemos ver através da história muitos exemplos bem tristes dessa combinação. Fé e Razão, mantendo cada uma a sua identidade, precisam se olhar todo tempo, dialogar sempre. Nunca afastarem-se uma da outra. Aí se dará, sem conflitos, o desenvolvimento humano.
A razão busca provas, constatação cientifica, experiências concretas que levem a dados empíricos da realidade. A fé é experiência de Deus. Faz parte da seara do místico e transcendente. Daquilo que é mais profundo e que não pode ser provado pela ciência e a razão.
Um cosmonauta, fazem alguns anos, dava voltas à terra. Lá do alto nos enviou uma “pérola”. Afirmou que “Deus não existia porque ele passeava pelo céu e não o tinha visto”. Tanta besteira numa só frase. Deus não se vê, Ele se sente.
Enquanto a ciência é um salto na razão, a fé, como na historinha do alpinista, é um pulo no escuro. É lançar-se na “noite escura” para além daquilo que se possa ver e provar. E Deus, a fé me diz, não está distante desse salto. Ele nos segurará no colo caso nos lancemos na fé.
“Vimos o Senhor” é o que os discípulos, entusiasmados, relatam para Tomé que chega após ter acontecido a presença, entre eles, do Ressuscitado. Como costuma acontecer conosco, ele não acredita exigindo prova para que possa crer. Jesus então retorna e mostra as marcas das feridas, como se apresentasse a carteira de identidade, ou as impressões digitais.
Aqui cabe nos perguntarmos. Será que os discípulos ao dizerem que viram o Senhor o teriam visto com os olhos da cara, ou com os do coração? Parece-me ter sido com o olhar interior que eles sentiram a presença do Cristo entre eles. Tivesse sido com o sentido da visão não seria necessária a fé, pois seria somente a constatação da realidade.
É preciso ver com os olhos do coração, é o que Jesus Cristo nos pede. “O essencial é invisível aos olhos” nos ensina o Pequeno Príncipe. Tanto é assim que naquela hora nosso Senhor apresenta-nos nova bem aventurança: “Bem aventurados são aqueles que acreditaram sem terem visto”.
Precisamos procurar o profundo das coisas. Enxergar além das aparências, do físico das pessoas (e de Jesus). Além disto, é preciso ter cuidado porque os sentidos são enganadores. Nem sempre o que vemos é o que parece.
E João diz, também nesse trecho do seu Evangelho, que Jesus nos envia. Ser cristão é ser missionário. Não existe seguimento sem que se saia de si e caminhe na direção do outro. Seguir rumo ao próximo mesmo que se viva solitário num monastério, por exemplo. Importante é que se participe, pela oração, da vida e da realidade do mundo.
Vivendo assim se estará em missão, tanto quanto alguém enviado a um país distante. Santa Terezinha é padroeira das missões tendo passado a maior parte da vida num convento. Mais ainda que o movimento exterior do corpo, vale é a disposição do coração para caminhar com os irmãos, mesmo que distantes fisicamente.
A primeira leitura, tirada dos Atos dos Apóstolos, é base para a reflexão quando tratamos da vida em comunidade. Não interessa aqui discutir se era assim realmente, ou se ela nos é apresentada por Lucas como modelo a ser perseguido, tanto pelas comunidades do início da Igreja, quanto pelas nossas dois mil anos depois.
O chamado é para que persigamos esse comportamento, ou esse ideal. Vivamos unidos, partilhemos nossas coisas para que ninguém passe fome, guardemos fidelidade ao ensinamento e sigamos pela vida com alegria e simplicidade de coração.
Para reflexão durante a semana:
– Eu creio sem ter visto ou sou como Tomé e quero ter provas?
– Sinto-me enviado à missão pelo Ressuscitado?
– Minha comunidade caminha na direção do exemplo das primeiras comunidades?
1ª Leitura – At 2,42-47
Os que haviam se convertido eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna na fração do pão e nas orações. E todos estavam cheios de temor por causa dos numerosos prodígios e sinais que os apóstolos realizavam. Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um. Diariamente, todos freqüentavam o Templo, partiam o pão pelas casas e, unidos, tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E, cada dia, o Senhor acrescentava ao seu número mais pessoas que seriam salvas.
2ª Leitura – 1Pd 1,3-9
Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que não se mancha nem murcha, e que é reservada para vós nos céus. Graças à fé, e pelo poder de Deus, vós fostes guardados para a salvação que deve manifestar-se nos últimos tempos. Isto é motivo de alegria para vós, embora seja necessário que agora fiqueis por algum tempo aflitos, por causa de várias provações. Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira – mais preciosa que o ouro perecível, que é provado no fogo – e alcançará louvor, honra e glória no dia da manifestação de Jesus Cristo. Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais. Isso será para vós fonte de alegria indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação.
Evangelho – Jo 20,19-31
Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’. Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor. Novamente, Jesus disse: ‘A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio’. E depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos’. Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos contaram-lhe depois: ‘Vimos o Senhor!’. Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei’. Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles.Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’. Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel’. Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ Jesus lhe disse: ‘Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!’ Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.
Fernando Dias Cyrino
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