Cardeal Tagle: falta de respostas da nossa parte dilacerou o nosso povo
Teve início na manhã desta quinta-feira (21/02), na Sala Nova do Sínodo, no Vaticano, o encontro com os presidentes das Conferências Episcopais sobre a “Proteção dos menores na Igreja”.
O Papa Francisco dirigiu algumas palavras na abertura do evento. A seguir, tomou a palavra o arcebispo de Manila, Filipinas, cardeal Luis Antonio G. Tagle, que fez um discurso intitulado “O cheiro das ovelhas: conhecer a sua dor e curar suas feridas, eis a tarefa do pastor”.
“O abuso de menores cometido por sacerdotes causou feridas não apenas às vítimas, mas também às suas famílias, ao clero, à Igreja, à sociedade no sentido mais amplo, aos próprios abusadores e bispos. Também é verdade, e admitimos humildemente e com grande tristeza, que essas feridas foram infligidas por nós bispos às vítimas e, portanto, a todo o Corpo de Cristo”, frisou o purpurado.
Feridas precisam ser curadas
“A falta de respostas da nossa parte ao sofrimento das vítimas, até o ponto de rejeitá-las e cobrir o escândalo a fim de proteger os abusadores e a instituição, dilacerou o nosso povo, deixando uma profunda ferida em nossa relação com aqueles aos quais fomos enviados para servir.”
Segundo o cardeal Tagle, “a fé que gostaria de fechar os olhos diante do sofrimento das pessoas é apenas uma ilusão. A fé nasce e renasce somente das feridas do Senhor crucificado e ressuscitado, visto e tocado nas feridas da humanidade. Somente uma fé ferida é crível”. “Como podemos professar a fé em Cristo se fechamos os olhos a todas as feridas infligidas por abusos”, perguntou ainda o cardeal Tagle.
Testemunho autêntico e crível de nossa fé na ressurreição
“Irmãos e irmãs, isso é que está em jogo neste momento de crise, criado pelo abuso de menores e pela nossa má gestão desse crime. O nosso povo precisa que nos aproximemos de suas feridas, que reconheçamos os nossos pecados se quisermos dar um testemunho autêntico e crível de nossa fé na ressurreição. Isso significa que cada um de nós, bem como nossos irmãos e irmãs que estão em casa, devemos pessoalmente assumir a responsabilidade de curar esta ferida infligida no Corpo de Cristo, devemos assumir o compromisso de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir a segurança das crianças em nossas comunidades.”
As feridas de Jesus no momento da crucificação recordam “que as feridas são muitas vezes infligidas pela cegueira que vem da ambição e do legalismo e do uso indevido do poder que condenaram uma pessoa inocente a morrer como um criminoso. As feridas do Cristo ressuscitado lembram o sofrimento inocente, mas também a nossa fraqueza e a nossa imoralidade”.
“Se queremos ser portadores de cura, devemos rejeitar toda tendência que pertença a um pensamento mundano que se recusa a ver e a tocar as feridas dos outros, aquelas feridas que são as feridas de Cristo nas pessoas feridas. As pessoas feridas por abuso e pelo escândalo precisam que nós sejamos, agora, firmes na fé. O mundo precisa de testemunhas autênticas da ressurreição de Cristo que se aproximem de suas feridas como primeiro ato de fé”, frisou ainda o cardeal filipino.
Caminhar com as pessoas feridas por abuso
“Nós, Igreja, devemos continuar caminhando com as pessoas profundamente feridas por abuso, construindo confiança, oferecendo amor incondicional e pedindo repetidamente perdão, conscientes do fato de que, na realidade, o perdão não nos pertence, mas que só podemos recebê-lo se nos for dado como um dom e uma graça no processo de cura”.
O purpurado manifestou preocupação pelo fato de que “em alguns casos os bispos e superiores religiosos são tentados, às vezes até sob pressão, a escolher entre vítima e abusador. A quem ajudar? A reflexão sobre a justiça e o perdão nos leva à resposta: os dois. Quanto às vítimas, devemos ajudá-las a manifestar suas feridas profundas e curá-las. Quanto aos abusadores, é necessário aplicar a justiça, ajudá-los a encarar a verdade sem racionalização e, ao mesmo tempo, não negligenciar seu mundo interior”.
O segundo testemunho é de uma mulher africana
P. O que mais a feriu na vida?
R. A partir dos 15 anos, tive relações sexuais com um padre. Isso durou 13 anos. Fiquei grávida três vezes e ele me fez abortar três vezes, simplesmente porque não queria usar preservativos ou métodos contraceptivos. No início, eu confiei tanto nele que não pensei que pudesse abusar de mim. Eu tinha medo dele e toda vez que eu me recusava a ter relações sexuais com ele, ele me batia. Como eu era completamente dependente dele economicamente, sofri todas as humilhações que me infligia. Tínhamos essas relações tanto em casa quanto no povoado e também no centro de acolhimento diocesano. Nessa relação eu não tinha o direito de ter namorado. Toda vez que eu tinha um e ele vinha a saber, me batia. Era a condição para que me ajudasse economicamente… Ele me dava tudo o que eu queria, quando eu aceitava ter relações sexuais, caso contrário, me batia.
P. Como enfrentou todas essas feridas e como se sente agora?
R. Sinto que minha vida foi destruída. Sofri tantas humilhações nessa relação que não sei o que o futuro reserva para mim. Isso me tornou uma pessoa muito prudente em meus relacionamentos agora.
P. Que mensagem você quer dar aos bispos?
R. É preciso dizer que amar é essencialmente amar gratuitamente: quando se ama alguém, pensa-se em seu futuro, em seu bem. Não se pode abusar de uma pessoa dessa maneira. É preciso dizer que os sacerdotes e religiosos têm maneiras de ajudar e ao mesmo tempo também de destruir. Eles devem se comportar como responsáveis, como pessoas prudentes.
P. Muito obrigado. A sua contribuição será muito significativa para o encontro dos bispos. Mais uma vez obrigado.
O terceiro testemunho é de um homem do Leste Europeu
Tenho 53 anos, sou sacerdote religioso. Este ano completo 25 anos de ordenação. Sou grato a Deus. O que me feriu? Feriu-me o encontro com um padre. Quando adolescente, depois da conversão, ia ao sacerdote para que me ensinasse como ler as Escrituras durante a missa, e ele tocava as minhas partes íntimas. Passei uma noite em sua cama. Isso me feriu profundamente. Outra coisa que me feriu foi o bispo ao qual falei, depois de muitos anos, já adulto, sobre o ocorrido. Fui a ele junto com o meu provincial.
Primeiro, escrevi uma carta ao bispo, seis meses depois de uma conversa com um padre. O bispo não me respondeu e depois de seis meses eu escrevi para o núncio. O núncio reagiu mostrando compreensão. Depois eu encontrei o bispo e ele me atacou sem tentar me entender, e isso me feriu. De um lado o padre e do outro o bispo que … O que sinto? Sinto-me mal, porque nem aquele padre respondeu à minha carta e nem o bispo respondeu, e já se passaram 8 anos.
O que eu gostaria de dizer aos bispos? Que eles escutem essas pessoas, que aprendam a ouvir as pessoas que falam. Eu queria que alguém me escutasse, que se soubesse quem é aquele homem, aquele padre e o que faz. Perdoo de coração aquele padre e o bispo. Agradeço a Deus pela Igreja, sou grato por estar na Igreja. Tenho muitos amigos sacerdotes que me ajudaram.
O quarto testemunho é de um homem dos Estados Unidos
Agradeço por esta solidariedade para com as vítimas de abusos sexuais cometidos pelo clero e estou feliz de participar deste projeto.
O que mais me feriu? Quando reflito sobre esta pergunta, penso novamente na plena tomada de consciência da perda total da inocência da minha infância e como tenha influído em mim hoje. Ainda há dor nos meus relacionamentos familiares, ainda há dor em meus irmãos e irmãs. Ainda sinto dor pelos meus pais, ainda sinto dor pela disfunção, pela traição, pela manipulação que esse homem malvado, que na época era o nosso padre católico, infligiu à minha família e a mim. Isso é o que mais me feriu e que hoje carrego comigo. Agora eu estou bem, porque encontrei esperança e cura contando a minha história, compartilhando-a com minha família, minha esposa, meus filhos, minha família num sentido mais amplo, e meus amigos. E visto que como consigo fazê-lo me sinto melhor comigo mesmo e consigo ser eu mesmo.
O que eu gostaria de dizer aos bispos? Acho uma ótima pergunta. Gostaria de pedir aos bispos uma liderança, uma liderança de visão e coragem. Esta é a minha resposta e isso é o que eu gostaria de ver. Tive uma experiência pessoal de liderança intensa nesse sentido, e isso me tocou pessoalmente. Uma das minhas lembranças mais bonitas do cardeal Francis George foi quando ele falou das dificuldades dos irmãos sacerdotes que tinham cometido abusos: penso que aquelas palavras ditas por um homem em sua posição, embora tenha sido muito difícil para ele pronunciá-las, foram palavras justas e oportunas. Naquele momento, acreditei que havia uma liderança e acredito que exista também agora. Pensei: se ele pôde se expor e se tornar um exemplo, então eu poderia fazer isso também, e outros sobreviventes e outros católicos e fiéis podem se expor a fim de trabalhar por uma solução, trabalhar por uma cura, por uma Igreja melhor. Precisamos de uma liderança. Peço aos nossos bispos para que mostrem sua liderança.
O quinto testemunho é de um homem asiático
Fui molestado sexualmente por muito tempo, e mais de cem vezes, e essas moléstias sexuais me causaram traumas e flashbacks por toda a vida. É difícil viver a vida, é difícil estar com as pessoas, se relacionar com as pessoas. Eu tive esse comportamento também em relação à minha família, meus amigos e até mesmo Deus.
Toda vez que falei com os Provinciais e com os Superiores maiores, eles cobriam regularmente o problema, cobriam os abusadores e isso à vezes me mata. Conduzi esta batalha por muito tempo, mas a maior parte dos Superiores não são capazes de deter os abusadores, por causa da amizade entre eles.
Peço aos Provinciais, aos Superiores maiores e aos bispos que participam desse encontro para tomarem ações severas. Se queremos salvar a Igreja, acredito que os abusadores devem ser punidos. Peço aos bispos para tomarem iniciativas muito claras, porque esta é uma das bombas-relógio da Igreja na Ásia.
Se vocês querem salvar a Igreja, devemos nos mover e indicar os autores com nome e sobrenome. Não devemos permitir que as amizades cubram esse tipo de coisa, porque isso destruirá toda uma geração de crianças. Como Jesus dizia, devemos nos tornar como crianças, não molestadores de crianças.
Fonte: Vatican News – Mariangela Jaguraba