Como vencer as barreiras da individualidade?

Publicado em 10/11/2012 | Categoria: Notícias |


Entrevista especial com Márcio Fabri dos Anjos

“Há um esforço de entender a alteridade, o estrangeiro, como semelhante a ser respeitado”, diz o teólogo.

   

              “Como nós conseguiremos vencer as barreiras da individualidade, visto que estamos muito potencializados como indivíduos? (…) Quais teorias nos ajudam a sair desse embrulho, dessa confusão?”, pergunta o teólogo Márcio Fabri dos Anjos, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, quando participou do Congresso Continental de Teologia, na Unisinos. Para ele, é preciso retomar um “pensamento mais ontológico, centrado na constituição do ser”. Diante desse desafio, a Igreja também tem uma missão no sentido de “pensar o que significa a missionariedade da Teologia Moral, ou seja, uma comunidade que não é feita para si própria, mas sim feita para os outros. A Igreja não é para si mesma; por isso que o envio, a missão é fundamental na vida do cristão”. E complementa: “A Teologia Moral se vê também como missionária, mas para ser missionária, ela tem que ser Ética Teológica, não pode ser uma imposição dos padrões que se vivem internamente para as outras pessoas”.

Márcio Fabri dos Anjos também analisa as mudanças da Igreja a partir do Concílio Vaticano II e comenta os documentos que emergiram do encontro. “Ao mexer na antropologia, o Concílio Vaticano II mexe no miolo, no núcleo da ética cristã, ou seja, e propõe ética de responsabilidade, de corresponsabilidade, porque o homem é um concriador de Deus”, constata.

         Márcio Fabri dos Anjos é doutor em Teologia, é docente e pesquisador do programa de pós-graduação em Bioética do Centro Universitário São Camilo, de São Paulo, e membro da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a concepção de ser humano que emerge do Concílio Vaticano II e quais as decorrências para a antropologia e ética cristã?

Márcio Fabri dos Anjos – A concepção do humano do Concílio Vaticano II é ampla, mas tem alguns aspectos importantes, dos quais saliento o resgate do humano dentro da autonomia das pessoas. Quer dizer, esta concepção de humano dialoga muito com a autonomia e resgata a natureza da pessoa humana, e não só o homem dentro de uma ontologia pré-estabelecida. Na natureza do humano estão a inteligência, a liberdade, a densidade de sua existência em aberto; ele se torna um construtor da vida. O Concílio Vaticano II insere o humano dentro de uma teologia da Criação, em que o humano é um concriador de Deus.

Um dos textos da Gaudium et Spes diz que o progresso científico não é uma concorrência com Deus. Pelo contrário, é uma revelação da grandeza que Deus fez com a criação do humano. Então, isso naturalmente transmuta toda a ideia de natureza humana. Outro dado importante é o deslocamento que o Vaticano II faz do ser humano vivendo no eixo da culpa, deslocando-o para o eixo da responsabilidade, ou seja, agora nós temos nas mãos a responsabilidade pelos destinos da história. Então, ao mexer na antropologia, o Concílio Vaticano II mexe no miolo, no núcleo da ética cristã, ou seja, e propõe ética de responsabilidade, de corresponsabilidade, porque o homem é um concriador de Deus. Então, o Concílio inspira a antropologia dentro do que nós chamamos de “Jesus homem de Deus”, que nos ensina como sermos seres humanos dentro de uma missão tão grandiosa.

IHU On-Line – Diante desse conceito de alteridade, qual o desafio para o cristianismo no sentido de se relacionar no diálogo inter-religioso?

Márcio Fabri dos Anjos – A alteridade é um princípio de Lévinas, é um pensamento filosófico que questiona e revisa o pensamento dos seres a partir das suas ontologias. Ele diz que as ontologias fechadas são um princípio e um mecanismo ruins para nos pensarmos, porque nesse “fechamento” nós não temos vasão de ser. Nós temos que pensar de forma comunicativa, de forma de alteridade, ou seja, que nós somos para os outros – e não para nós próprios. Lévinas diz que não podemos pensar por ontologias; nós precisamos pensar por uma metafísica da alteridade, ou seja, irmos além dessa ontologia, e descobrirmos no Outro a razão provocativa de sermos.

Esse é um dado importante e no cristianismo encontramos expressões de Jesus dizendo: “quem quiser guardar a vida para si irá morrer, mas quem oferecer essa vida para os outros e colocar essa abertura de partilha da vida, esse tem a vida; essa é a chave do viver”. Hoje podemos encontrar na fé cristã uma densidade muito grande de pensamento filosófico de outros setores que não se dizem, talvez, cristãos, setores nos quais, todavia, podemos encontrar o suporte da densidade de um pensamento que sustenta a razão da fé que temos.

IHU On-Line – Qual foi a relevância desse documento conciliar da Gaudium et Spes e como ele impulsionou o pensamento ético na Igreja pós-conciliar?

Márcio Fabri dos Anjos – Não podemos restringir a influência do Vaticano II só na Gaudium et Spes, porque o conjunto dos documentos mudou a postura do humano. Veja bem, o primeiro documento aprovado se chama Sacrosanctum Concilium, e ele renovou a liturgia no sentido de passá-la do latim para o português, de o padre não celebrar a missa de costas para o povo etc. Então, a força ética e, ousaria até dizer, política, que está nessa mudança – porque embutido nisso está a compreensão de que nós temos de olhar face a face, de que a nossa busca é conjunta –,traduziu-se na expressão: “O senhor esteja convosco. Ele está no meio de nós”. A resposta anterior era: “Teu espírito também”. Com essa mudança, Deus está na nossa caminhada, quer dizer, mudou a postura da Igreja. Ao analisarmos outros documentos, como o Lumen Gentium, veremos que a categoria povo de Deus é explosiva, ou seja, nós somos um povo. Então, já não somos mais indivíduos que temos uma moralidade que será satisfatória, e pela qual nós vamos nos salvar. Nós somos um povo em caminho.

O documento Gaudium et Spes é importante por dois motivos: ele oferece elementos mais específicos de fundamentos para a ética cristã, como o conceito de natureza humana – fala também da autonomia da natureza, como que nós nos relacionamos com o conjunto da vida ambiental -; e depois faz uma leitura tópica das questões de família e das relações sociais, onde exemplifica uma nova forma de fazer Teologia Moral ou Ética Teológica. Então, ele representou um crescimento muito grande.

Nos documentos do Vaticano II existe um outro que se chama Optatam Totius, que fala sobre a formação presbiteral. Esse documento dá diretrizes sobre como trabalhar a Teologia Moral na formação dos padres. À primeira vista, fica parecendo um pouco seletivo, corporativo. Porém, ao colocar diretrizes, ele revoluciona o estudo e vai abrir a Teologia Moral para a Ética Teológica, porque se recupera a Teologia Moral como vocação cristã, recupera-se a fundamentação da exposição científica da teologia, uma inspiração bíblica mais forte, mais presente e não mais centrada no pecado e, sim, na vocação ao amor, na responsabilidade de que esse amor seja frutuoso para a vida do mundo. Então, com isso ele planta diretrizes que são altamente revolucionárias para a forma de se pensar a Teologia Moral.

IHU On-Line – Como se deu a articulação da Teologia Moral na América Latina?

   – A Teologia Moral na América Latina e na Igreja como um todo estava pensada por clérigos, formação presbiteral, e na sua origem está a preparação dos padres para atender confissões. Isso porque, antes, a Teologia Moral não era um tratado à parte; ela era um dos aspectos da coerência entre a fé e as práticas dos cristãos. A Teologia Moral surge como um tratado à parte após o Concílio de Trento, como forma de preparar os padres para atenderem às confissões.

Então, vamos encontrar na América Latina esse estado em que a Teologia Moral paga o tributo de preparação para os padres, muito voltada à formação da consciência individual e à detecção de pecados, tendo uma centralização muito grande na sexualidade. A evolução desse modelo começa por uma descoberta das injustiças – e do ambiente mais amplo delas – que estão num conjunto da vida social e eclesial. Medellín trouxe uma dimensão de leitura autoimplicativa de como nós, dentro da Igreja, nos vemos nas análises que fazemos. E a Teologia da Libertação vem exatamente como uma forma propositiva de fazer a busca entre a coerência da fé com as práticas. Com isso, incrivelmente a Teologia da Libertação vem fazer uma grande provocação à Teologia Moral, tanto que se critica o moralismo com que se faz esse tipo de trabalho e a condução das consciências.

A Teologia Moral passou a ser colocada diante do crivo de “mudar ou se tornar obsoleta”. Então, houve um esforço grande de mudança da Teologia Moral no sentido de transformá-la em um discurso mais coerente. Ela está pensada como uma coerência da fé para o agir dos cristãos. Já a Ética Teológica traz, pelo viés da Teologia da Libertação e também depois como resultado do próprio Vaticano II, a seguinte pergunta: “Como os cristãos podem contribuir, com a sua fé, na sociedade?”. A ética dentro da sociedade é uma realidade como a sociedade plural. Quer dizer, a ética teológica também é plural enquanto as teologias são plurais, mas a pergunta que fica não se refere a um pensamento da coerência da fé para o interior da comunidade. Trata-se, isso sim, da contribuição que este grupo de fé, com opção preferencial pelos pobres, com meios de análise do que se passa na sociedade, pode oferecer para a própria sociedade. Isso nós chamamos de Ética Teológica. Essa interação vai ser feita naturalmente de forma, às vezes, beligerante, mas o desejo é de que seja profundamente respeitosa, sem perder a capacidade de indignação, se não ela se torna concessiva.

IHU On-Line – A partir deste contexto, quais são as grandes questões éticas e morais que interpelam a Igreja por respostas?

Márcio Fabri dos Anjos – A Igreja não é a única que terá respostas. O Vaticano II diz, na Gaudium et Spes, que as angústias, esperanças e sofrimentos da humanidade são aquelas dos cristãos. Ou seja, nós participamos das grandes interrogações que a humanidade tem, e temos de ver como podemos contribuir para oferecer respostas a partir dos segmentos de Jesus.

No segmento de Jesus, a escolha pelo amor, o caminho do amor e da doação não reservam para si profunda compaixão com as necessidades das pessoas. Surge então a pergunta pelos pobres e como podemos levar ao mundo, a partir daí, esse fermento de transformação e essa estrela-guia para os caminhos da vida. Com esse olhar é que nós podemos chegar ao mundo e descobrir quais são as interrogações, porque aquilo que às vezes vemos como problema, outros podem estar vendo como solução, que é a situação de Paulo. Ele dizia: “Aquilo que vocês acham que é lixo, para nós é precioso; e aquilo que vocês acham precioso, para nós é lixo”. Então, nós temos uma hermenêutica que nasce de uma visão que vem de segmento. Mas o mundo é plural. Temos de oferecer e chamar a atenção, dizendo: “Olha! Aqui há um caminho”. E com isso nós oferecemos uma contribuição.

 

Compaixão

A pergunta que temos de fazer é: O que a compaixão nos leva a perceber?

Existe uma frase de Theodor Adorno que é fantástica nesse sentido. Diante do holocausto, do extermínio e do nazismo na segunda grande guerra, ele disse: “Deixar falar a dor é condição de toda verdade”, ou seja, hoje estamos numa necessidade de realmente não esconder as dores do mundo, as angústias que estão presentes, e os sofrimentos. Então, esse fascínio pela razão instrumental, esse fascínio pela tecnologia está nos enfeitiçando.

Como podemos ajudar a humanidade a perceber como o fascínio tecnológico, que nós chamamos de razão instrumental num aspecto mais amplo, tem um grande ganho, um grande avanço, mas é também uma grande arapuca? Precisamos lidar melhor com isso. Aí está uma grande gama de problemas dos quais derivam outros subsequentes, que são as formas como nós nos inter-relacionamos, ou seja, nos relacionamos com relações de dependência, de dominação, as discriminações e, ao mesmo tempo, vêm as emergências de grupos que agora ganham forças por esse sistema. Como lidamos com isso?

Embrulho

Quais teorias nos ajudam a sair desse embrulho, dessa confusão? Em primeiro lugar, há um ponto básico e fundamental que é exatamente a relação entre as ontologias, um pensamento mais ontológico, centrado na constituição do ser, da natureza, e o existencial, com a força das ciências tecnológicas. Nós damos muito mais versatilidade e densidade ao essencial, ao momento presente. Então, o que é estável? Nós perdemos a estabilidade. Como pensarmos a provisoriedade e compormos com alguma estabilidade? É uma coisa um pouco complicada, porque uma das soluções que se tem proposto é a de que tudo seja provisório. Mas não é esse o caso. Temos força, temos uma lei natural, temos a estabilidade natural.

A segunda ferramenta teórica trata do nível das relações. Quem é o Outro para nós? Essa é uma grande pergunta que não é nova. Através da história sempre tivemos de lidar com outras pessoas. A própria Bíblia lidou com essa questão na antiguidade, onde o Outro não tinha a ideia de ser humano como referência, ou seja, o Outro era o estrangeiro e se tinha de acabar com ele. Então, há um esforço de entender a alteridade, o estrangeiro, como semelhante a ser respeitado. Isso foi uma grande conquista da Bíblia. Essa concepção foi se arrastando por tanto tempo que só depois da Segunda Guerra Mundial foi elaborado o primeiro tratado internacional de respeito aos direitos humanos, em 1948. Mas uma declaração como esta não resolve todos os problemas da humanidade. Como fazer um processo de subjetivação, mas não de submissão, e sim como interiorização desses processos e torná-los realmente diretrizes de vida, estrela-guia para a nossa vida? Este é um grande desafio: como nós conseguiremos vencer as barreiras da individualidade, visto que estamos muito potencializados como indivíduos? Então, as nossas subjetividades se tornam formas isoladas e seletivas para nos relacionarmos.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Márcio Fabri dos Anjos – A Teologia Moral de Libertação deve ser pensada em duas chaves ou dois momentos diferentes. Um momento interno do grupo teológico, da comunidade cristã, onde temos que libertar a própria Teologia Moral de algumas amarras centradas na culpabilização, centradas nas formas ingênuas de entender os processos humanos. A Teologia Moral é pensada sempre a partir de uma comunidade que tem uma consciência autocrítica. Nesse sentido, é preciso se perceber dentro de uma comunidade maior que também tem o que ensinar, e de quem nós podemos a aprender. Não podemos perder a identidade própria, mas também não podemos nos fechar nessa identidade. A Teologia Moral fechada em si mesma tende a profundíssimas ambiguidades e retoma aquilo que Jesus criticou para a religião de seu tempo. É preciso buscar uma metodologia capaz de garantir uma proximidade fiel ao mistério de Cristo, à superação da ingenuidade do amor, que acha que o amor não precisa de mediações históricas para ver como ele se dá e como pode ser desdobrado nos processos existenciais.

O segundo movimento consiste em pensar o que significa a missionaridade da Teologia Moral, ou seja, uma comunidade que não é feita para si própria, mas sim feita para os outros. A Igreja não é para si mesma; por isso que o envio, a missão é fundamental na vida do cristão. A Teologia Moral se vê também como missionária, mas para ser missionária, ela tem que ser Ética Teológica, não pode ser uma imposição dos padrões que se vivem internamente para as outras pessoas. Ela tem que anunciar. As formas com as quais ela trabalha possuem outros componentes, como o da diversidade cultural e o da diversidade de referências. Então, ela precisa tomar as referências da alteridade pelo diálogo das racionalidades presentes também no Outro. Faço essa distinção garantindo a cientificidade da Teologia Moral, mas o momento do diálogo com a diversidade se torna um outro momento. A Teologia Moral tem que fazer Ética Teológica para ser missionária.

Fonte: Unisinos



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