Comum X Normal
Dizia o Rosa: “sapo não pula por boniteza, mas por precisão…”. A cada necessidade, aperto ou ‘precisão’, alguém tem que se virar pra encontrar uma saída.
Imagino nosso ancestral das cavernas, vivendo num ambiente hostil, ameaçado por feras, tribos rivais, os rigores do clima. O fogo era garantia de sobrevivência. A tribo que possuía o fogo possuía a vida. Ele aquecia, afastava os animais ferozes e os inimigos.
Mas o fogo era dádiva dos deuses. Ao redor de uma fogueira deve ter acontecido o primeiro ritual de culto a uma divindade. Afinal, ele vinha do céu, no raio que riscava o horizonte, incendiando a pradaria. Um dos membros da tribo, mais corajoso, foi, por primeiro, até o local do incêndio e “roubou” o fogo dos deuses.
Era preciso, então, preservá-lo, não deixar que se apagasse. Para quem quer assistir a um filme espetacular sobre esse tema, sugiro “A guerra do fogo”, de Jean Jacques Annoud, o mesmo diretor de “O nome da Rosa” e “Sete anos no Tibet”. Imperdível.
Foi assim até que alguém aprendeu a “fazer o fogo” (lembra da cena de Tom Hanks, em “O naufrago”?). Imagine o impacto que deve ter causado na tribo quando um sujeito entrou numa caverna com um graveto seco nas mãos e saiu de lá, exibindo a todos, o fogo. Foi imediatamente eleito o primeiro pajé.
É assim desde que o mundo é mundo. Necessidade gera criatividade. Dizem que tão logo foi criado o cinto de castidade, alguém inventou o abridor de latas.
Pensei em tudo isso ao ler no Caderno de Veículos do Estado de Minas desse sábado, 27/12, reportagem sobre o lançamento do mais novo sedan compacto da Ford. Nada de especial, a não ser por um detalhe. O veículo vem com um sistema de abertura interna no porta-malas, o que, segundo a matéria, “é muito útil em caso de sequestro relâmpago…”.
Como diria o Caetano, “alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial…”. E não é de hoje. Marina Colasanti escreveu, faz tempo (1972), uma crônica genial com o título; “Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia” (confira em http://www.releituras.com/mcolasanti_eusei.asp ).
Continuamos nos acostumando demais com coisas que não devíamos admitir. Na campanhaeleitoral de 2012, para eleição de prefeito, em BH, a cidade foi toda perfurada com buracos que anunciavam a chegada, em breve, de um metrô de verdade. O prefeito foi reeleito em cima dessa e de outras promessas (ou mentiras) e… nada.
Na campanha eleitoral terminada a pouco, a mesma infidelidade à verdade se viu, tanto nos palanques da situação quando da oposição. Alguém diria; em campanha eleitoral, promessa é o normal…
Estamos confundindo o comum com o normal. É comum, sim, prometer uma salada de obras ao eleitor e depois dar-lhe uma banana. Nunca será normal.
É comum encontrar nos semáforos das nossas ruas crianças pedindo esmolas, vendendo balas. Nunca será normal.
Tornou-se comum, é até chamada de “ética do mercado”, a relação promíscua, predatória e criminosa de políticos e empresários com o também chamado “dinheiro público”. Nunca será normal que crianças fiquem sem merenda, a população sem Educação, Transporte digno e Segurança, para enriquecimento brutal de uns poucos.
É comum ver modernos prédios, casas e condomínios rodeados por cercas eletrificadas e rolos de arame farpado que antes só se viam em filmes de guerra, nos campos de concentração. Nunca será normal morar num lugar assim.
Ao ver a foto do carro, brilhante, sedutor, atraente, me imaginei preso no seu porta-malas, agradecido à criatividade dos engenheiros da Ford, esperando, aflito, que os bandidos se distraíssem um segundo que fosse para que eu acionasse o moderníssimo acessório que me garantiria, quem sabe, a liberdade.
“Liberdade, liberdade… abre as asas sobre nós”, eu cantava, empertigado, durante a Hora Cívica do Grupo Escolar Silviano Brandão, sob os olhos vigilantes de Dona Maria Carabetti França.
“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, nem ninguém que não entenda…”, poetava Cecília Meirelles em seu Cancioneiro da Inconfidência.
O menino em mim olha tudo isso com o coração aflito, tomado por sentimentos contraditórios. A luz de um Ano Novo tá chegando, me avisam. Tudo pode se transformar. Mas a sombra amarga dos meus medos parece, pouco a pouco, me lembrar:
Na confusão entre o comum e o normal, estão podando as asas dos nossos sonhos, apagando as brasas da nossa esperança…
Eduardo Machado