Deus como princípio estilístico

Publicado em 01/07/2012 | Categoria: Notícias |


Se antes era impensável aproximar teologia de literatura – metodológica e conceitualmente, assim como em termos de conteúdo – o mesmo não acontece agora. Havia um fechamento das disciplinas em si mesmas e a literatura que, teoricamente, lidava com a ficção e a verossimilhança não poderia nunca pensar em aproximar-se da teologia, que lidava com a verdade e a afirmação dogmática.

Hoje, com o giro copernicano que aconteceu no Concílio Vaticano II, trazendo a valorização das realidades terrestres, situando o humano no centro do pensar teológico, e considerando a experiência um convite a refletir, a literatura passou a ser vista como campo fértil de diálogo com a teologia. A prova disso são os numerosos trabalhos acadêmicos envolvendo as duas áreas do saber que têm sido publicados em diversos periódicos científicos, a quantidade de pessoas que trabalham nesta área, bem como o esforço de elaborar e discutir princípios metodológicos que fazem interagir as duas disciplinas. Ou seja, hoje em dia, literatura e teologia podem sim e, mais do que isso, devem trabalhar juntas.

Até o momento, as relações entre as duas áreas do saber são razoavelmente pacíficas, embora não deixe de haver conflitos e interações não tão bem-sucedidas. A literatura é amiga da vida, enquanto a Teologia trabalha com a inteligência da fé, que se autocompreende como experiência de vida e vida em abundância. O que sai da imaginação dos escritores e se transforma em matéria literária pode inspirar e realmente inspira os teólogos. Haja vista que vários teólogos escreveram e pensaram sobre obras e autores literários. Cito dois exemplos, um europeu, Hans Urs von Balthasar, que escreveu a memorável obra Le chrétien Bernanos, e um brasileiro, José Carlos Barcellos e todo o seu excelente trabalho sobre a obra de Julien Green. E há muitos outros. Dostoiévski, por exemplo, é um dos mais trabalhados autores em teses de teologia na Europa hoje em dia. E no Brasil começa a ser sempre mais estudado.

Portanto, assim como há distanciamento entre autores literários e críticos literários, também o há com os teólogos, que no fundo são criadores de linguagem, elaboradores de conteúdos postos em palavras. Os críticos literários são conhecedores profundos e sérios dos conteúdos literários e podem contribuir com sua crítica para um maior conhecimento por parte dos teólogos das obras literárias. Mesmo se os críticos têm um foco que não corresponde ao da teologia. Afinal, o diálogo da teologia com o ateísmo, o agnosticismo e o pluralismo, tem acontecido continuamente desde o Concílio Vaticano II e deve progredir e não voltar atrás. E a literatura poderá ser uma fecunda interface para que isto aconteça de forma positiva.

Karl-Josef Kuschel – grande sistematizador da relação entre teologia e literatura – insinua que Deus é um péssimo princípio estilístico. Podemos ensaiar uma interpretação desta afirmação e a mesma vai na linha do que o mesmo Kuschel diz sobre a Teopoética, área que ele cria e nomeia. Não é teopoética, diz Kuschel, o que se poderia chamar de “outra” teologia, ou da substituição do Deus de Jesus Cristo pelo dos diferentes escritores e poetas, mas a questão da estilística de um discurso sobre Deus que seja atual e adequado (cf. As escrituras e os escritores, 1999). De minha parte, creio que a afirmação central do cristianismo de que “Deus é amor” da Primeira carta de João é, ao contrário, um excelente princípio estilístico. O que, na história da humanidade, seduziu mais a literatura como tema do que o amor em todas as suas formas? Por isso, creio que nesse sentido, sim, Deus é um excelente princípio estilístico.

Hoje escritores e teólogos são convidados a aventurar-se nas águas movidas pelo encontro entre teologia e literatura. Às vezes experimentando-o como aragem, como diz o título de um livro recente, Aragem do Sagrado, outras como o estrondo de uma pororoca. Neste encontro de águas tudo pode acontecer e todos os temas são inspiradores.

Quem pode dizer, por exemplo, que o ceticismo está ausente deste diálogo? Após ler e estudar Machado de Assis é difícil afirmar isto. E muitas vezes e em muitos escritores há o embate entre crença e ceticismo, como se poderia ver em Camus, Dostoiévski e Saramago inclusive. Creio que aí reside, para o futuro próximo, um fértil caminho para o diálogo teopoético ou teoliterário. Sobretudo agora que estamos em tempo de secularização e novos ateísmos, em que a fé deve encontrar novas formas e expressões para dar razão de existir. Será talvez mais novo e fecundo fazê-lo por intermédio da literatura.

Autor: Maria Clara Bingemer

Fonte: Amai-vos



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