Inter Mirifica – aceitação oficial da Igreja dos meios de comunicação para desenvolver um trabalho pastoral
O decreto Inter Mirifica
É o segundo dos dezesseis documentos publicados pelo Vaticano II. Aprovado a 4 de dezembro de 1963, assinala a primeira vez que um concílio geral da Igreja se volta para a questão da comunicação. De fato, este documento tem grande importância, muito mais pela sua forma do que por seu conteúdo. Pela primeira vez , um documento universal da Igreja assegura a obrigação e o direito de ela utilizar os instrumentos de comunicação social. Além disso, o Inter Mirifica também apresenta a primeira orientação geral da Igreja para o clero e para os leigos sobre o emprego dos meios de comunicação social.
Havia agora uma posição oficial da Igreja sobre o assunto:
A Igreja Católica, tendo sido constituída por Cristo Nosso Senhor, a fim de levar a salvação a todos os homens e, por isso, impelida pela necessidade de evangelizar, considera como sua obrigação pregar a mensagem de salvação, também com o recurso dos instrumentos de comunicação social, e ensinar aos homens seu correto uso. Portanto, pertence à Igreja o direito natural de empregar e possuir toda sorte desses instrumentos, enquanto necessários e úteis à educação cristã e a toda a sua obra de salvação das almas.(IM 3).
O documento refere-se aos instrumentos de comunicação, tais como imprensa, cinema, rádio, televisão e outros meios semelhantes, que também podem ser propriamente classificados como meios de comunicação social (IM 1). Ao enumerar esses meios, no entanto, o decreto refere-se ao que fora comumente classificado como meio de comunicação de massa até aquela data. Nenhuma atenção é dada, no documento, às forças que articulam os meios de comunicação: por exemplo, anúncios, marketing, relações públicas e propaganda.
Com a finalidade de demonstrar quanto e como o tema comunicação se posicionava naquele período histórico da Igreja, e qual era a sua compreensão sobre tal assunto, faz-se necessário observar que o decreto Inter Mirifica foi preparado antes da primeira sessão do Vaticano II pelo Secretariado Preparatório para a Imprensa e Espetáculos (novembro de 1960 a maio de 1962). O esboço do documento foi aprovado pela Comissão Preparatória Central do Concílio. Posteriormente, em novembro de 1962, o documento foi debatido na primeira sessão do concílio e o esquema, aprovado, mas o texto foi considerado muito vasto. A drástica redução do texto é penetrada de profundas conotações e deixa margem para as mais variadas conclusões. Durante o primeiro período conciliar, o texto de 114 artigos foi reduzido para 24 artigos e submetido novamente à assembléia em novembro de 1963. A apuração dos votos registrou 1598 “sim” contra “503 “não”. Entretanto, ao contrário de demonstrar que isto seria um “ganho folgado”, é preciso relevar que o Inter Mirifica foi o documento do Vaticano II aprovado com o maior número de votos contrários.
O alto nível de oposição ao decreto, segundo o estudioso Baragli, foi atribuído à publicação simultânea de várias críticas ao documento, feitas por jornalistas em diversos jornais influentes da Europa e dos Estados Unidos. Houve três correntes de crítica: uma francesa, outra Americana e uma terceira alemã. A crítica francesa se opôs ao esquema do decreto durante a assembléia dos bispos franceses. Suas críticas tiveram eco imediato em R. Laurentin, no Le Figaro; H. Fesquet, no Le Monde; e A. Wenger e N. Copin, na La Croix. Este último escreveu: “O equema carece de conteúdo teológico, de profundidade filosófica e de fundamento sociológico”. Naturalmente que, sempre que se perde de vista a interdisciplinaridade da comunicação, a tentação é compreendê-la ou reduzi-la de acordo com esta ou aquela disciplina. Também atualmente poderia-se aprofundar muito o diálogo entre comunicação e teologia, se trilharmos caminhos desprovidos de reducões e preconceitos.
A segunda corrente, Americana, iniciou sua ação na Agência de Imprensa, US Bishop’s Press Panel, em 14 de novembro de 1963. O que se afirmava era que o documento não haveria de trazer mudanças significativas, uma vez que o texto “não continha posições inovadoras”. Dizia-se que o documento proclamava oficialmente “um conjunto de pontos previamente afirmados e pensados em nível mais informal”. A surpresa dos jornalistas americanos residia também e especialmente no artigo 12 do decreto, que trata da liberdade de imprensa. Decididos a fazer com que o documento não fosse aprovado, os jornalistas americanos elaboraram um folheto mimeografado, no qual o esquema era julgado vago e trivial, falando de uma imprensa inexistente, vista apenas como uma exortação pastoral. Chegaram a alertar que o decreto, “assim como está agora” demonstrava à posteridade a incapacidade do Vaticano II de enfrentar os problemas do mundo atual.
A oposição alemã, assinada por 97 padres de diferentes regiões, manifestou-se no 18 de novembro, mediante uma carta dirigida à Décima Comissão Conciliar, responsável pela redação do documento, propondo um novo estudo e um novo esquema. O grupo alemão também lançou uma circular, que foi distribuída na Praça São Pedro momentos antes da sessão conciliar. A circular se caracterizava pelo pedido aos bispos para optar pelo non placet (não satisfaz) porque o esquema era indigno de figurar entre os decretos conciliares, pois não refletia os anseios do povo e dos entendidos no assunto.
A manifestação pública dos jornalistas franceses, americanos e alemães teve forte influência sobre os bispos participantes do Vaticano II. Como mencionamos previamente, o Inter Mirtifica foi aprovado com o maior número de votos negativos dado a um documento do Vaticano II.
Ainda que o texto original do Inter Mirifica tenha reduzido de 114 para 24 artigos, o documento foi mais positivo e mais matizado do que os demais documentos pré-conciliares. Os 24 artigos que compõem o decreto conciliar estão assim divididos: uma breve introdução (2 artigos); o capítulo 1, com 10 artigos destinados à doutrina; o capítulo 2, com 10 artigos referentes à ação pastoral; e os 2 artigos da conclusão.
A introdução utiliza os termos “instrumentos de comunicação social”, preferindo-os a “meios audiovisuais”, técnicas de difusão (expressão usada correntemente na França naquela época), “meios de informação”, “mass media”, ou “mass communications”. Tal preferência baseou-se no fato de que o decreto queria referir-se a todas as tecnologias de comunicação.
Depois, o Vaticano II usou um conceito de tecnologia que não se atenha apenas às técnicas ou à difusão destas, mas incluía os atos humanos decorrentes, que são, no fundo, a principal preocupação da Igreja em seu trabalho pastoral. Do mesmo modo, a expressão “comunicação social” foi preferida aos termos “mass media” e “mass communication”, que parecem discutíveis e ambíguos por sugerirem a “massificação”, como se esta fosse decorrência inevitável da utilização dos instrumentos de comunicação social. A Igreja quis assumir assim uma visão mais otimista da comunicação frente às “questões sociais”. Em outras palavras, quis não apenas abarcar o fator técnico, mas também o aspecto humano e relacional, isto é, o agente que opera as técnicas (e os que o recebem), além da consideração dos instrumentos de comunicação. Tal intenção foi sem dúvida importante, mas ao longo de sua história e, ainda hoje, a Igreja continua, em grande parte, “presa” ao discurso dos instrumentos, à utilização das técnicas, enquanto o discurso da comunicação já se tornou mais amplo e complexo, incluindo uma gama de variedades e interferências na cultura midiática atual.
Nos parágrafos introdutórios do primeiro capítulo, o Inter Mirifica assegura, pela primeira vez, num documento universal da Igreja a obrigação e o direito de a Igreja usar os instrumentos de comunicação social (IM 3).
A Igreja Católica foi encarregada por Jesus Cristo de trazer a salvação.para proclamar o Evangelho. Conseqüentemente, ela julga que seja parte de seu dever pregar a Boa Nova da redenção com o auxílio dos instrumentos de comunicação social.Por essa razão, a Igreja reivindica, como direito inato, o uso e a posse de todos os instrumentos desse gênero, que são necessários e úteis para a formação cristã e para qualquer atividade empreendida em favor da salvação do homem (IM 3).
Houve surpresa por parte de alguns críticos, como J. Vieujean, com o fato de que um documento conciliar começasse por afirmar os direitos da Igreja no uso dos instrumentos de comunicação. Entretanto, é o próprio Baragli quem argumenta que, já que o primeiro capítulo abordava as premissas da doutrina da Igreja, esse era o lugar ideal no documento para tal afirmação. Tratava-se de uma imposição lógica, concernente à própria estrutura do documento. Segundo Baragli, a ênfase deveria ser colocada em “direito inato (nativum). Portanto, isto não deve ser entendido como direito de posse, mas como parte da missão da Igreja de educar e de contribuir para o desenvolvimento da humanidade. A última, mas não menos importante razão para tal afirmação, era o fato de o direito nato da Igreja ao uso e à posse de todas as tecnologias de comunicação ter sido negado em vários países sob regimes totalitários
A maior contribuição do Inter Mirifica, no entanto, foi sua assertiva sobre o direito de informação:
É intrínseco à sociedade humana o direito à informação sobre aqueles assuntos que interessam aos homens e às mulheres, quer tomados individualmente, quer reunidos em sociedade, conforme as condições de cada um (IM 5).
Considerando provavelmente como a mais importante declaração do documento, este trecho demonstra que o direito à informação foi visto pela Igreja não como um objeto de interesses comerciais, mas como um bem social. Dezessete anos depois o Relatório MacBride – Many voices, one world: communication and society today and tomorrow (Unesco, 1980) (Muitas vozes, um só mundo: comunicação e Sociedade agora e no futuro) iria além do “direito à informação” ao defender o “direito à comunicação”.
A comunicação, atualmente, é material de direitos humanos. Mas é interpretada cada vez mais como um direito à comunicação, indo além do direito de receber comunicação ou de ter acesso à informação (MacBride 172).
O primeiro capítulo do Inter Mirifica também aborda temas como a opinião pública, já considerada anteriormente por Pio XII. E dirige-se ao público em geral, não apenas ao que está ativamente envolvido com os meios de comunicação, mas também ao receptor das mensagens.
O artigo 12 foi um dos mais polêmicos: analisa o dever da autoridade civil de defender e tutelar uma verdadeira e justa liberdade de informação. Este artigo foi interpretado, especialmente por alguns jornalistas americanos, como sendo contra a liberdade de imprensa. Realmente, o Inter Mirifica justifica a interferência do Estado, a fim de proteger a juventude contra a “imprensa e os espetáculos nocivos à sua idade” (IM 12).
Por outro lado, o artigo 12 não é bem claro mesmo em sua língua original (latim), pois fala da civilis auctoritas (autoridade civil), em um lugar, e, mais além, da Publica potestas (poder público). O decreto usa ambos os termos com o mesmo sentido, mas a tradução, em diversas línguas, acabou por reduzi-los à “sociedade civil”. No entanto, atribuir direitos e deveres à sociedade civil não parece ser a mesma coisa que atribuí-los às autoridades públicas, aos governos. Fica patente, neste artigo 12, que a Igreja deveria ter feito mais pesquisas no assunto e ter contado com a assessoria de peritos nessa área, mesmo católicos, e de modo a oferecer soluções mais adequadas à proposta de aggiornamento. Aliás, esta parece ser uma “falha” que permanece na Igreja, salvo certos casos ou posições de algumas Conferências Episcopais. A comunicação é interdisciplinar, mas tem o seu discurso histórico, sócio-cultural próprio a ser considerado quando a Igreja aborda essa temática, para que não aconteça que a comunicação seja vista somente pelo viés de certas disciplinas que não conhecem ou reduzem a comunicação ao “uso” ou “consumo” existente na sociedade de hoje. A comunicação é bem mais ampla e complexa.
O segundo capítulo do Inter Mirifica volta-se para a ação pastoral da Igreja em relação aos instrumentos de comunicação social. Nesta parte pastoral do decreto, tanto o clero quanto o laicato foram convidados a empregar os instrumentos de comunicação no trabalho pastoral. Enumeram-se então diretrizes gerais, referentes à educação católica, à imprensa católica e à criação de secretariados diocesanos, nacionais e internacionais, de comunicação social ligados à Igreja (IM 19-21). Medidas são sugeridas para que se consagre um dia por ano à instrução do povo no que tange à reflexão, discussão, oração e deveres em relação às questões de comunicação – Dia Mundial das Comunicações (IM 18). Do mesmo modo, determinou-se a elaboração de uma nova orientação pastoral sobre comunicação, “com a colaboração de peritos de várias nações”, sob a coordenação de um secretariado especial da Santa Sé para a comunicação social (IM 23).
Embora, o papa Paulo VI afirme que o Inter Mirifica não “foi de pouco valor”, os comentaristas concordam com o fato de que, se este decreto tivesse sido discutido mais no final do concílio, após as muitas sessões consagradas à Igreja no mundo moderno e à liberdade religiosas, o texto do Inter Mirifica teria sido particularmente mais enriquecido. Como querem alguns, o decreto olhou o passado e não o futuro, olhou para dentro e não para fora. Ele não aproveitou as realizações criativas do profissionalismo e da prática secular em comunicação de massa.
Apesar de tantas limitações, é mais do que justo ressaltar os aspectos positivos do Inter Mirifica, dos quais, ao longo destes quarenta anos, se transformaram em objeto de atenção por parte da Igreja e se desenvolveram em dimensões maiores ou menores, segundo o interesse e a “inculturação” da Igreja nas mais diversas realidades, incluindo o Brasil. Em resumo, esse decreto pode ser considerado um divisor de águas em relação à mídia, e não um fim em si mesmo. Foi a primeira vez que um concílio ecumênico da Igreja abordou o assunto da comunicação, dando independência ao tema dentro da Igreja. Fez também um avanço em relação aos documentos anteriores, ao conferir à sociedade o direito à informação (IM 5), à escolha livre e pessoal, em vez da censura e da proibição (IM 9). Além de reconhecer que é dever de todos contribuir para a formação das dignas opiniões públicas (IM 8), o decreto assume os instrumentos de comunicação social como indispensáveis para a ação pastoral. Finalmente, o Inter Mirifica oficializa o Dia Mundial das Comunicações, o único indicado por um concílio da Igreja.
Nos passos do Concílio
Como resposta pastoral ao decreto Inter Mirifca (1963), o papa Paulo VI promulgou em 1971 a instrução Communio et Progressio. Trata-se de um documento pastoral da Igreja que não tem caráter dogmático. Não é uma encíclica, nem um documento conciliar da Igreja como o Inter Mirifica. A Communio et Progressio foi escrita pela Comissão Pontifícia para os Meios de Comunicação Social. De fato, o nome completo do documento é “Instrução Pastoral para a aplicação do Decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre os Meios de Comunicação Social”. O documento, marcado pela abertura que caracterizou os documentos do concílio, mas sobretudo a evolução das mentalidades nos anos seguintes, desenvolve-se em 187 artigos e distingue-se do decreto Inter Mirifica particularmente por seu estilo.
Naturalmente que o texto retoma as grandes convicções do Inter Mirifica em relação à mídia, completando-as e apresentando-as de uma forma mais coerente e compreensível. A instrução é relevante, ainda, pelo seu tom e pelo desenvolvimento dos caminhos segundo os quais a ação pastoral deve utilizar os meios de comunicação: a esperança e o otimismo são dominantes e o caráter moralizador e dogmático desaparece.
Sobressai no documento, como uma de suas características principais, o fato de que ausculta a sociedade contemporânea, levantando questões sobre a presença das tecnologias da comunicação no mundo circundante: “. a Igreja deve saber como reagem nossos contemporâneos, católicos ou não, aos acontecimentos e correntes de pensamento atual” (CP 122). Uma terceira característica desse documento é que ele considera as peculiaridades de cada veículo de comunicação, inclusive o teatro. Leva em conta a situação psicosocial dos usuários na elaboração de projetos de comunicação para a Igreja, pois “todos esses fatores exigem, por parte da pastoral, uma atenta consideração” (CP 162) e o povo deve ser atendido por um “pessoal bem preparado” (CP 162). Finalmente, a Communio et Progressio ressalta que a comunicação social é um elemento que articula qualquer atividade da Igreja, reconhecendo a legitimidade da formação da opinião pública dentro dela.
Este artigo foi publicado na Revista ESPAÇO, publicada pelo Instituto de Estudos Superiores (ITESP) – S. Paulo, dezembro 2003.
Fonte: Portal Paulinas