Não se perturbe o vosso coração
Liturgia da Missa – Reflexão sobre a Mesa da Palavra do Quinto Domingo da Páscoa
Ano A – 18/05/2014
Ela havia sofrido muito quando criança. Sentira-se traída e por isto evitava a todo custo criar relações mais profundas. Construiu uma couraça em torno do coração. Toda vez que alguém tentava se aproximar, logo arrumava um jeito de expulsá-la. Fechou-se totalmente na sua casa e a cada dia era uma pessoa ainda mais triste. Em sonhos lhe vinha a possibilidade de ser feliz. Mas achava que iria encontrar a felicidade sozinha. Refletia: “como é que ela poderia vir das pessoas se elas não me são nem um pouco confiáveis?” Isto deixava bastante perturbado seu coração. Envolta na tristeza nem notara que não cuidava mais de si. No meio da crise lembrou-se de alguém que na infância tivera um olhar especial para ela. Pegou o telefone para sondá-la e foi acolhida. Esse “anjo” veio até ela, deu-lhe a mão, que ela reticente teve dificuldade de tomar e a levou por um belo caminho, mostrou-lhe a verdade das muitas moradas de Deus e que dentre elas tinha uma especial para ela. Enfim, ensinou-a a sair do casulo e tecer, não enclausurada, mas fora dele, novas e significativas relações.
O início do Evangelho de João deste domingo parece ter sido escrito para nós nesses tempos Pós modernos. Ele começa com Jesus nos acalmando: “Relaxem, não deixem que fique perturbado o vosso coração”. A velocidade vertiginosa com que a vida passa gera-nos stress e não deixa que a contemplemos.
Parecemos seguir pelo mundo viajando num carro em alta velocidade. A paisagem muda rapidamente e muito daquilo que gostaríamos de saborear se perde com a chegada das novas realidades postas diante dos sentidos.
Não devo ficar perturbado, o que significa ansioso e preocupado, porque sou filho do Pai misericordioso que tem preparada para mim a morada do Amor. Uma leitura mais superficial desse trecho joanino poderá nos levar a pensar que a casa do Pai é um imenso “conjunto habitacional”, onde cada um de nós terá o seu apartamento. Jesus não está tratando aqui de espaço físico. Algo definido dentro das dimensões de tempo e espaço nas quais vivemos.
Trata-se de algo muito mais profundo. As moradas precisam ser entendidas como relações que vamos construindo. Na casa do Pai elas terão continuidade aprofundando-se e embelezando-se eternidade afora. Cada uma das pessoas amadas é uma relação a ser mais ainda vivida na eternidade.
Nela também conheceremos as outras relações que nos são importantes e que nem nos damos conta delas. Quantas pessoas foram, ou mesmo ainda nos são importantes e nem sabemos quem sejam? De alguma forma elas participam das relações da nossa vida. Para que possa escrever nesse computador é necessário haver energia. Há várias pessoas cuidando para que ela não falte. Essas pessoas me são então significativas. Sigam essa linha de raciocínio e vejam quão imensas são as relações que temos. Acho que poderia considerar que não há ninguém na terra que esteja fora das minhas relações.
Na casa do Pai tem muitas moradas, mas lá não há espaço para a “casa do egoísmo”. Caso eu não gere relações, ou não as considere enquanto vivo, como poderei experimentá-las quando estiver junto do Pai? Por isto imagino que o inferno é a solidão. O fogo é não amar e nem se sentir amado por ninguém. É apanhar uma tesoura e ir cortando, uma a uma, todas as possibilidades de conexão. Há muita gente por aí que já vive no inferno.
“Na casa do meu Pai há muitas moradas”. Lá tem espaço para aqueles que são muito religiosos, participam ativamente da comunidade e não faltam à missa. Mas não somente para esses. Há também lugar para os jovens e adultos que, pela falta do suficiente testemunho da nossa parte, não consideram importante participar da Igreja como gostaríamos. Sendo pessoas boas, criando seu feixe amoroso de relações, sem dúvida que haverá espaço na casa do Pai para eles. É Jesus quem diz isto.
Algumas mães me contavam da sua preocupação com a salvação de seus filhos. Diziam-me que mesmo sendo pessoas maravilhosas, com valores cristãos e vida plena de relações de respeito e cuidado com os outros, eles não participavam da Igreja como elas desejavam. Respondia-lhes então para que não se perturbasse o coração delas pois que o Amor não deixaria fora da sua casa os seus filhos.
Dá para imaginar o Amor como excludente? Na casa do Pai tem muitas moradas e haverá, com certeza também para eles, como para muitos outros que no nosso julgamento, tantas vezes mesquinhos, avaliamos como pessoas más e que não merecem ter sua morada na casa do Pai.
Essas relações comportam riscos e tentações. Há caminhos demais no mundo. Cada um deles com convites os mais sedutores para que os sigamos. A questão é que acabam nos levando a verdadeiros becos sem saída. São desvios a nos tirar da verdadeira trilha da felicidade.
Temos também muitas “verdades” à nossa volta que nada mais são do que mentiras embrulhadas em papéis coloridos de presente. A mentira da propaganda, do consumo, das drogas, do sexo desvairado, do individualismo, do dinheiro. São verdades do mundo que não respondem ao anseio de vida plena.
Existem por aí muitas formas de vida pela metade. São existências manipuladas, obstruídas, violentadas, exploradas, assassinadas fisicamente, ou mortas ao serem tratadas com desdém. Quantas vezes vemos por aí o quão pouco vale a vida para tanta gente. Ao preparar esta reflexão vem-me à tanto desprezo à vida que assistimos, ao vivo e a cores diariamente pela televisão.
O Evangelho termina com uma tremenda provocação. Diz-nos o Senhor que quem acredita nele é capaz de coisas ainda maiores do que aquelas que realiza. Somos seres criados para o mais, para o grande e não podemos nos contentar com a pequenez de uma vida insignificante. Fazer o que é grande não significa se tornar famoso, ou ficar esperando a oportunidade de realizar algo que chame a atenção de todos e seja notícia na TV. Significa ser grande nas nossas relações. Ser grandes com os filhos, maridos, esposas, amigos, na comunidade, e também com os chefes e subordinados. Somos sonhos maravilhosos de Deus. Ele tem planos imensos para cada um de nós.
Para refletir durante a semana:
– Tenho andado com o coração perturbado?
– Creio que na casa do Pai há uma morada para mim?
– As relações que construo levam-me para a eternidade, ou são superficiais e sem sentido?
1ª Leitura – At 6,1-7
Naqueles dias: o número dos discípulos tinha aumentado, e os fiéis de origem grega começaram a queixar-se dos fiéis de origem hebraica. Os de origem grega diziam que suas viúvas eram deixadas de lado no atendimento diário. Então os Doze Apóstolos reuniram a multidão dos discípulos e disseram: ‘Não está certo que nós deixemos a pregação da Palavra de Deus para servir às mesas. Irmãos, é melhor que escolhais entre vós sete homens de boa fama, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos dessa tarefa. Desse modo nós poderemos dedicar-nos inteiramente à oração e ao serviço da Palavra’. A proposta agradou a toda a multidão. Então escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo; e também Felipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas e Nicolau de Antioquia,
um pagão que seguia a religião dos judeus. Eles foram apresentados aos apóstolos, que oraram e impuseram as mãos sobre eles. Entretanto, a Palavra do Senhor se espalhava. O número dos discípulos crescia muito em Jerusalém, e grande multidão de sacerdotes judeus aceitava a fé.
2ª Leitura – 1Pd 2,4-9
Caríssimos: Aproximai-vos do Senhor, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e honrosa aos olhos de Deus. Do mesmo modo, também vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo. Com efeito, nas Escrituras se lê: ‘Eis que ponho em Sião uma pedra angular, escolhida e magnífica; quem nela confiar, não será confundido’. A vós, portanto, que tendes fé, cabe a honra. Mas para os que não crêem, ‘a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular, pedra de tropeço e rocha que faz cair’. Nela tropeçam os que não acolhem a Palavra; esse é o destino deles. Mas vós sois a raça escolhida, o sacerdócio do Reino, a nação santa, o povo que ele conquistou para proclamar as obras admiráveis daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa.
Evangelho – Jo 14,1-12
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: ‘Não se perturbe o vosso coração. Tendes fé em Deus, tende fé em mim também. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós, e quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós. E para onde eu vou, vós conheceis o caminho.’ Tomé disse a Jesus: ‘Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?’ Jesus respondeu: ‘Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. Se vós me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai. E desde agora o conheceis e o vistes.’ Disse Felipe: ‘Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta!’ Jesus respondeu: ‘Ha tanto tempo estou convosco, e não me conheces, Felipe? Quem me viu, viu o Pai. Como é que tu dizes: `Mostra-nos o Pai’? Não acreditas que eu estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim mesmo, mas é o Pai, que, permanecendo em mim, realiza as suas obras. Acreditai-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim. Acreditai, ao menos, por causa destas mesmas obras. Em verdade, em verdade vos digo, quem acredita em mim fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas. Pois eu vou para o Pai.
Fernando Dias Cyrino
www.fernandocyrino.com