O cuidado com a casa comum

Publicado em 10/05/2016 | Categoria: Notícias |


papa contemplando oracao

Por Sinivaldo S. Tavares*

Há cerca de um ano, na Solenidade de Pentecostes, o papa Francisco agraciou-nos com a Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum. Poucos documentos do magistério pontifício provocaram tamanha expectativa como esse e não apenas entre os católicos.  Anunciada em diversas ocasiões, a Laudato Si’ suscitou um clima de grande expectativa e de acalorada discussão em torno de seu eventual conteúdo antes mesmo de sua publicação. De fato, a Encíclica se ocupa de um tema candente e de singular gravidade e urgência: a atual situação de descaso em que se encontra nossa casa comum. E o que mais nos surpreende é a tamanha receptividade que o discurso do papa vem recebendo no âmbito da cultura e da sociedade em geral. A relevância e a urgência do tema associadas ao caráter visivelmente inovador da encíclica muito têm contribuído para tamanha receptividade.

A Laudato si’ apresenta-se como inovadora em diversos aspectos, a começar pelo nome. Que ela seja dirigida a todas as pessoas, cidadãs do mundo, e não apenas, como de costume, aos fiéis católicos constitui outra novidade. E as inovações não param por aqui. A atitude do papa Francisco de se unir ao Patriarca Ecumênico, Bartolomeu, no inadiável apelo ao cuidado da casa comum. As inúmeras referências explícitas, no decorrer do texto, a documentos dos episcopados continentais e nacionais, bem como a outros autores do âmbito da cultura em geral. E, last but not least, que o estilo do papa Francisco seja cordial e poético e, ademais, que o tom da encíclica seja propositivo e esperançoso não nos parecem meramente casuais. Como adverte Paul Ricoeur, o tom de um discurso é dimensão constitutiva de seu conteúdo e, portanto, de fundamental importância para a compreensão de seu sentido.

Todo texto, enquanto resultado de uma complexa tessitura, testemunha uma pluralidade de interfaces. Há, portanto, o verso de um texto e seu reverso. No avesso percebem-se melhor as linhas que se entrelaçam na intrincada trama do texto propriamente dito. Ocupar-se das entrelinhas de um texto constitui passo imprescindível para uma compreensão expandida e profunda do mesmo. Significa, em outros termos, dar-se conta daquilo que, invisível no corpo do texto, responde por sua estruturação e articulações intestinas. Gostaríamos de nos deter, aqui, em dois elementos que se deixam entrever no tecido da Laudato Si’: o horizonte e o tom da encíclica e o contundente apelo do papa ao diálogo entre saberes e práticas.

Não, por acaso, iniciamos pela consideração do horizonte no interior do qual se situa o discurso do papa na Laudato Si’. Esse horizonte é responsável pelo tom do discurso nela proposto. O horizonte é marcado pela gratuidade, expressa no enternecimento para com as criaturas do universo, e seu tom é de esperança. Escreve o papa: “a esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas” (n. 61). E isso sem comprometer a crítica contundente aos sintomas e às raízes últimas do atual estado de degradação no qual se encontra o planeta, nossa casa comum. É muito difícil conjugar dialeticamente esperança e crítica. Em geral, a presença de um desses dois elementos termina por afugentar o outro. E o que presenciamos, na maioria das vezes, é uma situação de exclusão recíproca.

Na Laudato Si’, o papa Francisco conduz a bom termo essa difícil tarefa. Prova disso é o fato de combinar dialeticamente textos extremamente críticos com relação à presente situação com textos de bela poesia, reveladores de uma alma profundamente contemplativa. Seu discurso contagia-nos não apenas ao despertar-nos para a beleza da criação ou para a inalienável dignidade de cada criatura. Toca-nos, igualmente, ao desvelar a real situação de cumplicidade entre tecnociência, economia e política, desmascarando os reais interesses do paradigma tecnocrático.

Para se compreender em profundidade o contundente apelo ao diálogo entre saberes e práticas que o papa Francisco dirige a cada cidadão e a todos os cidadãos do planeta, é oportuno situá-lo em seu contexto de origem. Na introdução da Laudato Si’, vemos que o apelo é precedido por uma constatação e feito a partir de uma motivação. Bem no início da encíclica, o papa Francisco constata que “entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (n. 2).

A seguir, a motivação nos é dada na sugestiva figura de Francisco de Assis. Ele nos é apresentado como inspirador de práticas e discurso reveladores do cuidado para com a criação. E é interessante notar que já na motivação aparecem claramente aqueles traços que caracterizarão o conjunto da encíclica, a saber: a íntima relação entre descaso ambiental e injustiça socioeconômica; a imprescindibilidade de se superar o antropocentrismo marcado pelo domínio e pelo consumismo em vistas de uma atitude mais contemplativa e reverencial; a preocupação com a ecologia integral. Escreve o papa: “Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior” (n. 10).

E, por fim, temos o apelo dirigido não apenas aos cristãos, mas a todos os cidadãos do planeta, autênticos “filhos da terra”. Esse apelo é pela aliança entre os vários saberes da sociedade: entre as ciências e as religiões, entre as culturas dos povos originários e do povo em geral, incluindo a arte e a poesia, a vida interior e a espiritualidade. O papa Francisco formula esse apelo já nos primeiros parágrafos da Laudato Si’, nos seguintes termos: “Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós” (n. 14).

E o apelo do papa se reveste de singular credibilidade por vir acompanhado de sinais e gestos reveladores de uma abertura sem precedentes à cultura do encontro e do diálogo. Além de se unir a seus imediatos predecessores (Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) nos momentos cruciais do texto da encíclica, o papa Francisco faz questão de, já na introdução, se unir também ao Patriarca Ecumênico, Bartolomeu, no inadiável apelo ao cuidado da casa comum, em duas referências, a nosso ver, profundamente significativas.

Na primeira, endossa a interpretação de Bartolomeu de que os contínuos maus tratos provocados ao planeta são verdadeiros crimes contra a natureza e contra nós mesmos e, em última instância, um pecado contra o Criador (n. 8). E na segunda, salientando a preocupação do Patriarca Ecumênico com as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, o papa o cita ao dizer que o exercício da ascese cristã não se reduz simplesmente a renunciar, quanto em aprender a dar, propondo-nos a “passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de partilha […]” (n. 9).

As inúmeras referências explícitas, no decorrer do texto, a documentos dos episcopados continentais e nacionais, bem como a outros autores do âmbito da cultura em geral também confirmam a vontade sincera do papa Francisco de testemunhar o diálogo como possível via para o enfrentamento das questões postas nesse princípio de século. Aliás, a esse propósito, dignas de menção são as notas de referência que subjazem ao texto da Laudado Si’. Elas são profundamente reveladoras da consciência inaugurada e proposta pelo papa Francisco. Segundo nos parece, esse constitui um recurso excogitado pelo papa Francisco com o objetivo de manifestar seu desejo de construir novas relações marcadas pelo encontro e pelo diálogo. E assim fazendo, oferece-nos um válido testemunho de abertura a toda tentativa de diálogo e de aliança entre os vários saberes e práticas que compõem o rico mosaico de nossa civilização contemporânea.

* Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia sistemática na FAJE e no ISTA, Belo Horizonte. Entre suas recentes obras, publicadas pela Editora Vozes, estão: Evangelização em diálogo: novos cenários a partir do paradigma ecológico; Evangelização e Interculturalidade; Teologia da Criação: outro olhar – novas relações; Trindade e Criação. Em 2016, organizou com A. Murad, o livro: Cuidar da casa comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si’, publicado por Edições Paulinas. Tem publicado ainda estudos em obras coletivas e artigos em revistas teológicas especializadas.

Fonte: Dom Total



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