O exemplo de Francisco

Publicado em 06/08/2015 | Categoria: Notícias Papa Francisco |


papa viagem

A escolha do nome indica o caminho do papa na reforma da Igreja e no combate aos males do mundo

O papa Francisco é o homem do século XXI. A marca indelével que ele já deixou nos primeiros dois anos de pontificado e, na nossa opinião, continuará mantendo na nossa época, foi confirmada de maneira nítida por ocasião da recente viagem à América Latina. Acolhido com enorme entusiasmo em cada etapa, tanto na periferia pobre de Assunção quanto na Catedral de Quito, falando aos estudantes ou aos movimentos populares das diferentes nações, ainda uma vez Jorge Bergoglio conseguiu espalhar sua palavra com grande impacto, e atingiu o mundo inteiro.

A missão latino-americana representou um extraordinário sucesso de participação popular e de audiência mundial. Sua capacidade de análise integral, mesmo falando aos mais humildes, sejam catadores de lixo, sejam desempregados, lhe permite enfrentar as questões mais complexas com aquela simplicidade desarmante que convence e comove, superando qualquer barreira de língua ou de cultura.

Grande orador, na melhor tradição jesuíta, Francisco consegue falar com eficácia aos quatros cantos do mundo em qualquer circunstância, graças à mídia, que, favorável ou contrária, ecoa constantemente sua mensagem pastoral e o acompanha passo a passo, sem exclusão da sua imprevisível originalidade. Nesse anseio e com a dificuldade de definir o personagem, que sem dúvida não se encaixa em nenhum esquema anterior, até os jornais mais respeitados caem em banais escorregões, como aconteceu na semana passada com The Economist, ao dar o título “O papa peronista” a um artigo dedicado à recente viagem latino-americana. Voz sofisticada do establishment econômico-financeiro internacional, a revista britânica revelou-se, desta vez, no mínimo superficial, mas, não obstante a crítica implícita nesse título, os austeros colegas londrinos não conseguiram evitar definir o papa Francisco como um rock star.

A missão no Equador, na Bolívia e no Paraguai foi, de fato, a primeira em seu continente como fruto de escolha própria do papa argentino. A viagem ao Brasil em julho de 2013 tinha representado o cumprimento de uma promessa anterior feita por seu predecessor, Bento XVI, que decidira celebrar no Rio de Janeiro a Jornada Mundial da Juventude. Agora, no périplo por três países, Francisco passou oito dias, mudando de clima e altitude inúmeras vezes. Saiu de Roma com temperatura tropical de 35 graus para aterrissar no frescor de Quito com seus 2,8 mil metros de altitude. Desceu em seguida aos 40 metros de Guayaquil para subir de novo aos 4 mil metros do Aeroporto Internacional de El Alto, perto de uma La Paz ainda coberta de neve.

Depois de pronunciar 21 discursos e encontrar multidões, impressionou os jornalistas que o entrevistaram no avião, na viagem de volta, ao demonstrar aquele “vigor físico e espiritual” pleno que o papa Ratzinger admitira, honestamente, não ter mais no final do seu pontificado. Vigor que é, seguramente, fruto daquela injeção de entusiasmo e empatia da qual o papa precisava, depois de dois anos de pontificado particularmente intensos e que somente a volta às suas raízes sociais e religiosas podia lhe assegurar.

“A Igreja latino-americana tem grande riqueza: é uma Igreja jovem, com certo frescor, também com algumas informalidades. (…) Este povo e esta Igreja viva, com todos os seus problemas, representam uma riqueza. (…) Não devemos temer esta juventude. E esta Igreja, mesmo indisciplinada, com o tempo se disciplinará, mas nos dá um grande vigor.”

Com a viagem à América Latina, o papa Francisco continua desenhando o mapa ideal do seu pontificado e confirma sua opção pelo resgate das periferias do mundo. Não por acaso, os três países estão entre os mais pobres do continente e são alcançados depois das visitas a Sri Lanka e Filipinas, Turquia, Bósnia, Albânia e Palestina, países “críticos” por diferentes razões e por serem terras de recentes ou atuais conflitos. Para Bergoglio, “chegado do fim do mundo” à cadeira de São Pedro, a tentativa de dar protagonismo às periferias não tem um conteúdo abstrato ou ideológico, mas significa atenção concreta para os pobres e os excluídos. “É preciso seguir a Igreja”, ou seja, o povo de Deus. Aprender dos pobres e dos últimos, deixar-se evangelizar por eles – capazes de oferecer testemunhos de humana nobreza e solidariedade – sem esquecer nunca que os pobres não são apenas números na estatística, mas, sobretudo, nomes, rostos, histórias, pessoas de carne e osso com seus anseios e sofrimentos.

Não por acaso, esse papa demonstra-se tão à vontade quando encontra o povo, expresse ele ou não uma devoção religiosa. Esse fenômeno repetiu-se claramente por ocasião do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que se deu em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, no dia 9 de julho. Se o primeiro Encontro, convocado em Roma em novembro de 2014, como à época CartaCapital relatou aos seus leitores, demonstrou toda a radicalidade das posições sociais de Francisco, essa segunda ocasião para debater “os melhores caminhos para superar as graves situações de injustiça de que padecem os excluídos em todo o mundo” representou sem dúvida o momento crucial da visita latino-americana. 

Francisco começou seu discurso com uma premissa: “Para que não haja mal-entendidos, falo dos problemas comuns de toda a humanidade. Problemas que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado pode resolver por si só. (…) Digamo-lo sem medo: precisamos e queremos uma mudança. (…)Uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os povos (…) nem sequer o suporta a Terra, a irmã e Mãe Terra, como dizia São Francisco”.

Após a denúncia, o papa amplia o horizonte da sua análise: “Hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir essa globalização da exclusão e da indiferença”.

A mudança desejada por muitos, para ser integral, deve abranger também o espírito. Ela poderia ser definida como “… redentora. Porque é dela que precisamos. Nos diferentes encontros, nas várias viagens, verifiquei que há uma expectativa, uma busca forte, um anseio de mudança em todos os povos do mundo. Mesmo dentro da minoria cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste sistema, reina a insatisfação e, sobretudo, a tristeza. Muitos esperam uma mudança que os liberte desta tristeza individualista que escraviza”.

“E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro do ‘esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo plano.”  Volta aqui a crítica frontal ao sistema econômico dominante: “Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum, a irmã e Mãe Terra.”

Ante a imensidão do desafio lançado, Francisco é prudente quando sublinha que “nem o papa nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da realidade social e da proposta de soluções para problemas contemporâneos. Atrevo-me a dizer que não existe uma receita”. Mas, ao mesmo tempo, convidando os pobres a semear a mudança, ele indica a esperança como método. “Sabemos, amargamente, que uma mudança de estruturas que não seja acompanhada por uma conversão sincera das atitudes e do coração acaba a longo ou curto prazo por burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. É preciso mudar o coração.” E, finalmente, recorrendo a uma imagem que será muito apreciada pelos budistas, ele conclui o raciocínio afirmando: “Por isso gosto tanto da imagem do processo, onde a paixão por semear, por regar serenamente o que outros verão florescer, substitui a ansiedade de ocupar todos os espaços de poder disponíveis e de ver resultados imediatos”. 

Três tarefas foram indicadas pelo papa aos movimentos sociais: “A primeira é pôr a economia a serviço dos povos. (…) Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra”. E a mudança não é uma utopia: “É uma perspectiva extremamente realista. Os recursos disponíveis no mundo são mais que suficientes para o desenvolvimento integral de todos os homens”. A luta deverá ser concentrada, portanto, na “justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano”.

A segunda tarefa é o convite a “unir os povos no caminho da paz e da justiça”. Nesse percurso, um perigo grave vem do “novo colonialismo, que assume variadas fisionomias. Às vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro: corporações, credores, alguns tratados denominados ‘de livre-comércio’ e a imposição de medidas de ‘austeridade’ que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres”. Em outras situações, o novo colonialismo se manifesta no interior de cada país, por meio da “concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural. (…) É o colonialismo ideológico”.

“E a terceira tarefa, talvez a mais importante que devemos assumir hoje, é defender a Mãe Terra.” Continuando a divulgação do conteúdo da recente encíclica Laudato Si’, reitera-se aqui a sensibilidade inovadora por uma ecologia integral e um novo sistema de relações internacionais que considere com sabedoria os interesses das futuras gerações. Isso significa recusar o “paradigma tecnocrático que tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em razão do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano” e o meio ambiente. 

As palavras conclusivas desse discurso foram corajosas e, de certa maneira, históricas: “Peço humildemente perdão, não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes contra os povos nativos durante a chamada Conquista da América”.

Além desse encontro na Bolívia, outro momento de particular intensidade foi durante o primeiro discurso no Paraguai, quando, diante das principais autoridades do país, Francisco homenageou a mulher paraguaia, definida como a espinha dorsal da nação e a “mais gloriosa da América”. A referência foi à Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) em que Brasil, Argentina e Uruguai, agredindo o Paraguai, realizaram um autêntico genocídio, ao massacrar a grande maioria dos paraguaios e reduzir a população masculina a somente 25 mil indivíduos. Nessa trágica situação, a mulher paraguaia revelou-se como autêntica mãe da nação, levando adiante “suas famílias e seu país, infundindo nas novas gerações a esperança de um amanhã melhor”.

Inevitável que, entre os conteúdos aqui relatados e a luta de classe, muitos reacionários considerem que o passo é pequeno.  A fobia do comunismo é ainda muito forte nessas camadas da sociedade, mas é evidente que a arma polêmica se revela sempre mais instrumental, sobretudo no caso de Francisco, que, desse ponto de vista, não se preocupa minimamente em ser acusado de marxista ou peronista, munido de argumentos fortes para se contrapor. Sua resposta às acusações de “comunismo” é que a escolha dos pobres é historicamente bem anterior e remonta ao Evangelho. Além disso, a doutrina social da Igreja, a partir da Rerum Novarum de Leão XIII (1891) até a Caritas in Veritate de Bento XVI (2009), passando pela Populorum Progressio de Paulo VI (1967), oferece uma referência de conteúdos avançados e nobres.

O problema, no entanto, foi a inadimplência pastoral da Igreja na realização desses ideais. Essa contradição imperdoável, a produzir conservadorismo político-religioso nas épocas anteriores, está sendo resolvida pelo papa Francisco com passos de gigante. Efetivamente, do ponto de vista da doutrina, Bergoglio apresenta-se como continuador e não como revolucionário. Um reformista, com a recente encíclica ambientalista, mas no sulco de uma tradição já estruturada. Seu grande mérito foi o redescobrimento da palavra de Cristo, esquecida no tempo, e a tentativa da sua coerente aplicação. Não foi a Igreja, então, que se radicalizou teoricamente nos últimos dois anos, mas é a parte dominante da humanidade que é vítima de um modelo econômico e cultural – o neoliberalismo –, que representa o antagonista por excelência da ética cristã. 

Francisco tira de foco os reacionários e conservadores de todas as latitudes porque não é homem de esquerda. Sem pretender dar uma definição, poderíamos mais prudentemente observar que ele desconfia de todos os extremismos, tanto políticos quanto religiosos. Por falta de outras referências políticas críveis, o papa argentino caracteriza-se hoje como o principal intérprete de um modelo de sociedade alternativa, e quem o acusa de extremismo ou está de má-fé ou é simplesmente ignorante, porque não reconhece as dramáticas relações de força entre ricos e pobres que se estabeleceram nos últimos 30 anos na esfera mundana, e a paralela defasagem entre teóricos e pastores na Igreja Católica.

Inabalável em sua segurança espiritual, o papa Francisco passou incólume pela embaraçosa situação dos presentes extravagantes do presidente Evo Morales, que alguma intenção instrumental provavelmente cultivava. Deixou várias condecorações revolucionárias na Basílica de Nossa Senhora de Copacabana, padroeira da nação, para o desfrute dos bolivianos, mas levou consigo, com toda tranquilidade, o Cristo na cruz com foice e martelo, porque o considerou um belo exemplo de arte de protesto, obra daquele padre jesuíta Luis Espinal, assassinado em 1980, que ele admirava pela coragem, mas de quem desconhecia a habilidade escultórica. 

Saiu dos três países sem beatificar governo algum, apreciando, porém, os avanços positivos dos últimos anos, lembrando o valor do pluralismo e alertando sobre os perigos da ditadura, do culto da personalidade e do anseio por liderança absoluta.

Despediu-se com as seguintes palavras: “Peço-lhes, por favor, que rezem por mim. E se alguém não pode rezar, com todo o respeito, peço-lhe que me tenha em seus pensamentos e mande-me uma boa onda”. Tal é Francisco, um papa também muito simpático. 

 
Fonte: Carta Capital


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