O mistério do Deus uno e trino
Antônio Ronaldo Vieira Nogueira*
Experimentar o mistério do Deus uno e trino não é entrar num enigma indecifrável, mas deixar-se envolver na dinâmica do amor que nos alcança e impele a amar.
Falar, mas, sobretudo, experimentar a Trindade, é pensar e vivenciar o que nos diz São João: “Deus é amor” (1Jo 4,8). Isso é importante, pois, muitas vezes, quando falamos de Trindade nos vem logo à mente algo difícil, uma matemática complexa que não convence ninguém e que é melhor nem mexer. E, com isso, sem percebermos, estamos isolando a Trindade da nossa vida de fé, comprometendo seriamente nosso modo de ser e de viver como cristãos no mundo e até mesmo compreender a salvação.
Acontece que, tratar do mistério do Deus uno e trino, não é falar de um mistério matemático, mas do modo como Deus veio e vem ao nosso encontro, nos criando, salvando e santificando. Falar da Trindade é, portanto, expressar o modo como Deus se revela a nós para nos fazer participantes de sua comunhão de amor, para nos salvar. E aquilo que Deus revela a nós é o que Ele é em si mesmo: comunhão plena do amor. Experimentar o mistério do Deus uno e trino não é entrar num enigma indecifrável, mas deixar-se envolver na dinâmica do amor que nos alcança e impele a amar, sem nunca esgotar, mas sempre aprofundando mais a comunhão do amor.
O Amor que é Deus mesmo só se entende na relação. O que caracteriza a Trindade é que as pessoas não são sem as outras. O Pai não poderia ser Pai sem o Filho e o Filho não poderia ser Filho sem o Pai e ambos não poderiam ser sem essa comunhão de amor que é o Espírito Santo. O próprio de Deus, portanto, é se relacionar. É isso que experimentamos na sua revelação: Ele vem constantemente ao encontro do ser humano, sua criatura, estabelecendo relação de amor. Mas Deus só se relaciona com a humanidade, porque é relação em si mesmo. “No princípio está a comunhão dos Três e não a solidão do Um”, expressa com profundidade Leonardo Boff. Isso quer dizer que não podemos compreender as pessoas divinas fora de sua relação uma com as outras. Trata-se de uma comunhão de amor tão plena e profunda que uma não pode ser sem as outras e em tal comunhão se dá a mútua doação e entrega no amor. Mas a comunhão trinitária não é fechada em si mesma: ela se desborda de vida e amor, envolvendo toda a criação e, especialmente, os seres humanos. Estes, envolvidos nessa comunhão, também não podem ser pensados como seres isolados, como ilhas, mas como comunidade em estreita e mútua relação no amor. Entramos, pois, na comunhão com a Trindade por meio das experiências da criação, salvação e santificação.
O Pai criou tudo o que existe por meio do Filho na força do Espírito. A criação não é fruto de uma carência de Deus que estava sem ninguém para o reconhecer e glorificar. Não! A criação é pura gratuidade de Deus. Ele criou por amor e para amar tudo o que existe. Quando lemos o poema da criação (Gn 1,1-2,4a), podemos fazer a experiência de uma criação gratuita no amor: tudo é bom diante de Deus; e, do ser humano, sua imagem e semelhança, se diz que é “muito bom” (Gn 1,31). O fundamento da criação é o amor de Deus e Deus só nos ama porque é amor em si mesmo. Nesse mesmo amor nos criou para que também pudéssemos entrar nessa dinâmica de amor. Daí se segue que a criação é para a salvação. Fomos criados para ser salvos, isto é, para participarmos dessa dinâmica do amor que é Deus em si mesmo. Isso é importante, pois, muitas vezes, pautamos nossa relação com Deus no interesse: vamos ser bonzinhos para Deus nos amar mais. Porém, só podemos ser bons, porque na origem da capacidade de ser bons e amar está a iniciativa divina que nos ama gratuitamente e nos convida a essa comunhão do amor. “Quanto a nós amemos, porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19).
É por causa dessa mesma dinâmica do amor que nos convida a participar da vida divina que o Pai nos deu seu Filho Jesus: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). O Filho é o dom gratuito, inesperado e imerecido do Pai. N’Ele somos salvos! Nós só podemos participar da vida divina, porque Deus participa da nossa vida na encarnação do Filho. O dom do Filho, que age sempre na força do Espírito Santo (cf. Lc 3,22; 4,1.14.18 etc.) e que “passou fazendo o bem” (At 10,38) é manifestação plena do Pai e do seu amor pela humanidade. Jesus, o homem pleno, é a expressão da vocação de todo ser humano: ser uma pró-existência, ou seja, uma existência doada, entregue no amor absoluto para os demais. Jesus “que nos amou até o fim” (Jo 13,1) nos pede que nos amemos uns aos outros como ele nos amou (cf. Jo 14,12), isto é, nos impele a uma vida que, tendo experimentado o amor e se deixado envolver por ele, é capaz de amar do mesmo modo: gratuitamente, dando a vida numa fidelidade total até o fim. Essa gratuidade é experimentada sobretudo quando damos a vida por quem não nos pode retribuir: os pobres, os miseráveis, os marginalizados. Estes têm uma relação tão gratuita com Deus, de tanta confiança e total entrega que, ao receber uma esmola, não nos dizem “muito obrigado”, mas sim “Deus lhe pague”: colocam, sem medo algum, a responsabilidade do “pagamento” na “conta” de Deus. Precisamos aprender com eles, mas, sobretudo, amá-los, dando a vida como Jesus: “Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados e os cegos! Então serás feliz, pois estes não têm como te retribuir! Receberás a recompensa na ressurreição dos justos” (Lc 14,13-14).
Aqui se manifesta a experiência da santificação realizada pelo Espírito Santo que nos configura ao Filho para realizarmos a vontade do Pai. A santificação é a experiência de que a vida santa de Deus se faz presente na nossa vida. Estar cheio do Espírito implica para o cristão em estar cheio da experiência do amor que nos alcança e nos envolve. A salvação faz com que toda a humanidade assumida pelo Filho de Deus possa ser santificada. No Novo Testamento, o Espírito aparece sempre vinculado a Jesus Cristo: é Espírito de Cristo (Rm 8,9; Fl 1,19), Espírito do Senhor (2Cor 3,17), Espírito do Filho (Gl 4,6); sua missão não é outra senão ensinar e recordar tudo o que Jesus disse (Jo 14,26), dizer e explicar tudo o que ouviu/recebeu de Jesus (Jo 16,13-14), dar testemunho de Jesus (Jo 16,26). Assim, viver segundo o Espírito é ser configurado e conformado à vida concreta de Jesus, o qual viveu na radicalidade da vontade do Pai, revelando-o, por sua vida e missão, como um Deus de amor que se importa, escuta e age em favor de seus filhos excluídos. Jesus, na total fidelidade a esse Deus, age, na força do Espírito, para transformar as realidades de morte em realidades de vida. O cristão, cheio do Espírito, no seguimento de Jesus, para fazer a vontade do Pai, faz a experiência da vida santa de Deus na sua vida (santificação), levando a termo a missão de transformar o mundo pela força e poder do amor. O Espírito nos faz filhos no Filho, para vivermos a mesma entrega desmesurada de Jesus no serviço aos outros.
As experiências da criação, salvação e santificação não podem ser isoladas, mas nos comunicam a unidade do amor: a finalidade da criação é a santificação e para que isto aconteça é preciso a salvação. A participação na vida divina só é possível se Deus participa da vida humana em Jesus Cristo (salvação). Ao fazer tal experiência de Deus, percebemos nossa existência como puro dom do amor que tem sua origem na Trindade e que nos alcançou e envolveu. Esse dom nos impele a amar desmesuradamente do mesmo modo, dando a vida, criando comunidade, promovendo fraternidade, vivendo na justiça. A experiência trinitária implica, pois, nosso desinstalar-se e desorbitar-se de nós mesmos em direção ao outro, imagem do Outro, no amor. Só assim seremos imagens da Trindade: leveza e profundidade do amor que não exige nada, mas dá tudo, gerando comunhão e vida no amor!
Leia também:
- Adentrar na comunhão da Trindade
- A lógica trinitária do amor
- Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo
*Antônio Ronaldo V. Nogueira é presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte. Mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) Belo Horizonte-MG e professor de Teologia Sistemática da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) Fortaleza-CE.
Fonte: Dom Total