Para nós, seres humanos, comer não é ato meramente biológico. É obra de arte. Não avançamos nos alimentos como fazem os urubus ao encontrar carniça. Ou os cães ao rasgar com os dentes a carne presa ao osso.
Para nós, humanos, comer é um ritual. Uma festa. Comemos com a boca, os olhos, o odor, a pele. O apetite acorda ao escutarmos os chiados da fritura, o borbulhar da sopa ou ao sentir o perfume do suflê.
É grave desfeita não homenagear quem, com tanto esmero, prepara alimentos. É blasfêmia comer sozinho, de olho na TV ou na internet, sem sequer desfrutar o sabor de cada bocado ingerido. É pecado suscitar, à mesa, emoções negativas. É empobrecer a nossa humanidade aplacar a fome com um alimento indefinível, cujos ingredientes são de procedência duvidosa, como é o caso de certos sanduíches recheados de carne inidentificável.
Culinária é arte milenar, e nos identifica como seres culturais. Os demais animais a ignoram. A condição humana irrompeu no dia em que do cru obtivemos o cozido.
Comer é ato holístico. É a natureza que nos entra pela boca, com toda a sua rica e múltipla capacidade de nos nutrir a existência.
É em nós que, de modo exemplar, a natureza se recicla. Somos a sua usina de reciclagem. Ela nos oferece, através de verduras, legumes, cereais, carnes e frutas, os nutrientes essenciais para que a nossa vida se mantenha.
Cada célula, cada molécula do nosso ser se alimenta do que ingerimos. Toda a nossa constituição biológica, incluído o cérebro, é um complexo e harmonioso sistema digestivo.
Comer é um beijo na boca da natureza. Verduras, frutas, cereais e carnes, tudo nos é ofertado pela natureza. Comer é se relacionar com a fauna, a flora, a atmosfera, a água.
Comer é liturgia. Estendemos a toalha; dispomos os talheres, pratos e copos; sentamos à mesa; comungamos os alimentos com parentes e amigos. Isso sacia a alma e o corpo.
Comer é ato cultural que nos exige memória, raciocínio e inteligência. Conhecimento do que nos é oferecido no cardápio ou no prato. Todo cardápio tem identidade – mineiro, baiano, gaúcho ou paraense; italiano, francês, chinês ou japonês.
Cada ingrediente tem a sua história. Alguns são mais próximos de nós, latino-americanos. Tiveram origem em nosso continente, como o milho, a batata, a mandioca e o tomate. Outros vieram do Oriente, como o azeite, o café e a canela.
Comer exige memória. Não enquanto guardiã do conhecimento, e sim evocação da identidade familiar, étnica, provinciana e nacional. Como reage um mineiro radicado na Austrália ao se deparar com feijão tropeiro ou canjiquinha com costelinha de porco? E o gaúcho, ao ingressar em uma churrascaria de Nova York?
No prato à nossa frente há muito mais do que a combinação de certos ingredientes. Há a lembrança da avó, da mãe, da antiga cozinheira da família, do tio que gostava de pilotar um fogão. Há recordações da infância e dos tempos de antanho.
Por que segregar certos alimentos? São eles que nos fazem mal ou somos nós que não sabemos prepará-los adequadamente? Que culpa tem o feijão se quebramos os dentes ao insistir em comê-lo cru?
Há que respeitar a consistência de cada alimento, sua textura, seu ponto de maturação, seu potencial em multiplicar-se em inúmeras iguarias, como a uva que nos dá a fruta, o suco, a passa e o vinho.
Não basta saber apenas o que convém comer. Para a boa saúde do corpo e da alma, urge também saber onde, como e com quem. Nada pior do que comer na bancada de um bar com o rosto de frente para a parede. Ou ao lado de um depósito de lixo. Dá engulho dividir a mesa com quem exala pessimismo ou suscita discussões ofensivas. E compromete a boa saúde mastigar demasiadamente rápido, sem utilizar os dentes para triturar os alimentos, sentir-lhes o sabor e saciar o potencial das papilas gustativas.
O pão simboliza todos os alimentos. E Jesus, ao proclamar “eu sou o pão da vida”, nos fez entender que todo alimento é hóstia consagrada, da qual nos é assegurado o dom maior de Deus – a vida. Portanto, não há pecado ou crime mais hediondo do que desperdiçar alimentos ou condenar multidões à fome.
Frei Betto