“O Papa Francisco está a iniciar um novo capítulo na história da Igreja”
Um dos mais importantes teólogos da atualidade,Tomás Halíkestá em Portugal. Na entrevista publicada por jornal português Diário de Notícias, 02-05-2016, ele falou sobre o Papa Francisco, os refugiados e o seu mais recente livro, “Quero Que Tu Sejas!”.
Eis a entrevista.
Ao ler Quero Que Tu Sejas!, é impossível não pensar no Papa Francisco, nas suas preocupações e chamadas de atenção. Ele está a influenciar as atitudes da Igreja e a mudar certos comportamentos?
Espero que sim. A Igreja possui muitas dimensões e comporta diferentes realidades, e muitos tipos de pessoas. Penso que na hierarquia alguns não estarão totalmente em sintonia com o Papa. Mas Francisco está a iniciar um novo capítulo na história da Igreja. Está a criar um novo espírito na Igreja. A sua exortação sobre a família e o casamento pode não ter correspondido àquilo que algumas pessoas esperavam sobre a comunhão dos divorciados, mas creio que está lá algo muito profundo e sério.
O Papa não está a mudar as regras nem os ensinamentos em si, está a mudar o espírito da Igreja ao deixar implícito que não é a hierarquia ou a autoridade que têm todas as respostas. Está a dizer às pessoas que é preciso interpretar os ensinamentos de acordo com a situação de cada um. Padres e leigos devem ter consciência e sentido de responsabilidade perante as situações concretas.
Isso é suficiente?
Creio que os chamados conservadores e progressistas estão a cometer um erro de base. Os primeiros estão demasiado preocupados com as instituições da Igreja, os segundos querem mudar tudo, sem mais. Penso que a solução está em mudar o espírito, a inspiração que move a Igreja. Deixe-me explicar: não podemos ter um vinho novo em tonéis velhos nem tonéis novos com vinho velho. Isso não serviria para nada. Creio que o Papa está a produzir um vinho novo e é tarefa de todos construirmos novos tonéis. E isto interessa a crentes e até a não crentes.
O Papa Francisco influencia até a esfera dos não crentes?
Deixe-me contar aquilo que alguns amigos protestantes me dizem, com sentido de humor: “Qualquer dia deixo de ser protestante; não tenho nada a protestar contra este Papa.” E mesmo entre ateus encontro declarações a reconhecer que Franciscoé uma inspiração.
No plano do diálogo inter-religioso, há terreno comum para um diálogo relevante entre as diferentes denominações cristãs, e com muçulmanos, judeus e outros?
Temos de aceitar que vivemos num mundo pluralístico e multicultural. Mas não concebo uma espécie de esperanto religioso, uma religião universal, única e boa para todos. Isso não é possível. Só a tolerância também não basta. É preciso respeitar o carácter único e específico do outro. A cultura do respeito e o princípio de não fazer aos outros o que não queremos que nos façam a nós são o mais importante.
O Papa Francisco tem procurado intervir numa das questões que mais estão a afetar a Europa, a crise dos migrantes e refugiados. Alguns, invocando precisamente a dimensão cristã do continente, argumentam que existe o risco de “islamização” da Europa e que os muçulmanos são um perigo, quando exatamente a herança cristã deveria sugerir o contrário?
No meu país, alguns dizem “sim, vamos receber os refugiados, mas só os cristãos, não os muçulmanos“. Cristo nunca diria isso, estava disponível para os outros. Preferia os samaritanos, que eram odiados por muitos judeus, e que são heróis em muitas das suas parábolas. Quem utiliza o argumento cristão para negar a entrada de refugiados na Europa não é cristão.
Acriseé também uma oportunidade para nos interrogarmos sobre a nossa antiga identidade, o seu significado. Os cristãos deviam ser uma voz profética no nosso tempo e um exemplo prático de amor aos deserdados, aos estrangeiros. A solidariedade é uma característica cristã. Tem de haver uma relação entre o amor a Deus e o amor aos outros. Um amor que não é apenas emoção, é autotranscendência.
A propósito dessa distinção, um dos pontos centrais do seu mais recente livro,Quero Que Tu Sejas!, como é este Deus e como se relaciona com os crentes, e os não crentes, num momento em que, como refere naquela obra, a “ideia banal de Deus” está sob crítica?
Alguns sustentam que o mundo pós-moderno é um mundo pós-secular e que “Deus está de volta”. As coisas não são tão simples: de que deus estamos a falar? É o deus da antiga religião ou estamos a assistir a uma transformação? O que coloca alguns desafios e não deixa de ter riscos.
As principais transformações e riscos são: primeiro, a politização da religião, e não apenas no que respeita ao islã, o que a acaba por se transformar numa ideologia política; segundo, uma nova compreensão de Deus e da religião na filosofia e na teologia pós-modernas; e a terceira, o interesse pelas chamadas espiritualidades aliada à transformação da religião em espiritualidade. No que respeita à fé cristã, esta é e deve ser a fé da Páscoa.
Que quer dizer?
A passagem, através da morte, para a ressurreição, mas esta não é apenas um final feliz, não é o retorno ao estado anterior. O Cristo que volta regressa com as suas feridas. Penso na lenda de São Martinho quando foi tentado pelo demônio, que lhe apareceu sob a forma de Cristo, e aquele lhe perguntou:
“Onde estão as tuas feridas?” Não se pode acreditar numa Igreja sem feridas…
O Deus que está de regresso é o Deus que passou pela cruz…
Pela experiência da morte e pela ocultação ou ausência. Para os ateus, Deus nem sequer existe, está morto; para os entusiastas, claro que está presente, enquanto para os fundamentalistas é preciso observar os rituais, as regras. Para mim, penso que a verdadeira natureza da fé deve viver com esta característica da natureza oculta de Deus. Por exemplo, nos Evangelhos, Jesus regressa como um estrangeiro e em certos encontros a surpresa é grande. O Deus que está de regresso é um Deus desconhecido, desconhecido para nós.
Como escreve no livro, o amor é o principal atributo desse Deus?
Deus não é um objeto, uma coisa entre outras coisas. Só o podemos descobrir na experiência do amor, do amor às outras pessoas. Se este amor é autêntico, transcende-se a si próprio, transcende o nosso egoísmo. Então, podemos compreender Deus. Como se diz nos Evangelhos: quem não ama não reconhece Deus. Deus é reconhecível através da experiência do amor às outras pessoas. Não é possível dizer que amo Deus e os outros não me interessam, ou pouco me interessam.
O que é um desafio no mundo contemporâneo…
O ponto central é o de que, se amo alguém, este é mais importante para mim do que eu próprio. Tem de ser uma auto transcendência, algo muito superior à questão das emoções, algo incondicional, algo no mais profundo de nós próprios. Tem de ser algo em que há respeito e não existe manipulação, seja de uma pessoa ou da natureza, que deve ser cuidada de forma responsável, como diz o Papa Francisco.
Voltando à última parte da resposta à pergunta sobre Deus e o amor, cabe ao homem tornar Deus real pelas ações para com os outros?
Pensando nos ateus, quando lhes pergunto qual a imagem desse Deus em que não acreditam, muitas vezes as respostas fazem-me exclamar “Ainda bem que não acreditas nesse deus, por que nesse também eu não acredito!” Alguns acrescentam então que acreditam em algo superior, em algo que tem de nos transcender. E é um desafio para os teólogos interpretarem o que pode ser esse “algo”. E os cristãos não devem recear dizer que lhe podemos atribuir um nome e comunicar, através da oração, da meditação, da experiência com outras pessoas, com Deus.
A fé não é uma certeza absoluta. Em Quero Que Tu Sejas! fala numa aventura, com altos e baixos…
A fé e a dúvida são irmãs. As certezas absolutas são um risco, e não apenas no universo jihadista, também em certos círculos fundamentalistas ou tradicionalistas. As dúvidas podem ser uma pausa para aprofundarmos depois a fé, e a retificar. E devemos ter presente que Deus não é um problema, é um mistério. Posso resolver um problema, como num romance policial: o assassino é o jardineiro [risos]. Um mistério não tem fundo, obriga-nos a refletir sempre mais profundamente. Não há um ponto final, parágrafo. Deus é um mistério tão profundo que nunca o conseguiremos tornar nossa propriedade. O cristianismo é um projeto inacabado, a Igreja está a caminho. Não se pode dizer, como no Fausto de Goethe, “este é o momento”. Temos de prosseguir.
Deus permanece um mistério?
Mas não é um mistério anônimo. Encarnou na história com Jesus Cristo, a humanidade de Jesus é uma janela para vermos Deus.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos