O que eu diria no consistório
Entrevista com o cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, logo depois da V Conferência de Aparecida, em 2007.
“Preciso voltar”, ele não pára de repetir. Não que o ar de Roma não lhe agrade. Mas o de Buenos Aires lhe faz falta. Sua diocese. “Esposa”, como ele a chama. O cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, passa sempre correndo por Roma. Mas desta vez uma dor no nervo ciático o obrigou a prolongar sua permanência da Cidade Eterna para alguns dias de repouso. Ainda por cima, por ironia das circunstâncias, teve de faltar ao compromisso pelo qual havia atravessado o oceano: o encontro com o Papa e com todos os cardeais reunidos no consistório.
Sua companhia nunca é distante. Ele nos conta como foi a Conferência de Aparecida, na qual ele mesmo presidiu o comitê de redação do documento final. Conta que seu discurso no consistório seria sobre isso. É com seu jeito de falar manso e ao mesmo tempo agudo, incisivo, que despista e surpreende, que ele nos fala de tudo isso.
Eminência, o senhor falaria de Aparecida no consistório. Para o senhor, o que caracterizou essa quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano?
JORGE MARIO BERGOGLIO: A Conferência de Aparecida foi um momento de graça para a Igreja latino-americana.
Mas não foi pequena a polêmica em torno do documento conclusivo…
BERGOGLIO: O documento conclusivo, que é um ato do magistério da Igreja latino-americana, não sofreu nenhuma manipulação. Nem de nossa parte, nem da parte da Santa Sé. Houve pequenos retoques de estilo, de forma, e algumas coisas que foram tiradas de um lugar foram reinseridas em outro; a substância, portanto, continuou a mesma, não mudou absolutamente. Isso porque o clima que levou à redação do documento foi de colaboração autêntica e fraternal, de respeito mútuo, o que caracterizou todo o trabalho, que foi feito da base para o alto, e não o contrário. Para entender esse clima, é preciso olhar para os três pontos-chave, os três “pilares” de Aparecida, no meu modo de ver. O primeiro deles é justamente este: da base para o alto. Talvez tenha sido a primeira vez que uma conferência geral da América Latina não parte de um texto-base preconfeccionado, mas de um diálogo aberto, que começou antes mesmo, entre o Celam e as conferências episcopais, e continuou depois.
Mas as diretrizes da Conferência já não tinham sido apontadas pelo discurso de abertura de Bento XVI?
BERGOGLIO: O Papa deu indicações gerais sobre os problemas da América Latina, e depois deixou tudo em aberto: façam vocês, são vocês que fazem! Essa foi uma coisa muito grande, da parte do Papa. A Conferência começou com as exposições dos vinte e três presidentes das diversas conferências episcopais e, a partir dali, abriu-se a discussão sobre os temas nos vários grupos. As fases de redação do documento também foram abertas à contribuição de todos. Na hora de recolher os “modi”, para a segunda e a terceira redação, recebemos 2240! Nossa disposição foi acolher tudo o que vinha da base, do povo de Deus, e fazer não tanto uma síntese, mas uma harmonia.
Um trabalho difícil…
BERGOGLIO: “Harmonia”, eu disse, esse é o termo correto. Na Igreja, a harmonia é feita pelo Espírito Santo. Um dos primeiros padres da Igreja escreveu que o Espírito Santo “ipse harmonia est”, ele mesmo é harmonia. Só ele é autor ao mesmo tempo da pluralidade e da unidade. Só o Espírito pode suscitar a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e ao mesmo tempo fazer a unidade. Pois, quando somos nós que queremos fazer a diversidade, produzimos os cismas e, quando somos nós que queremos fazer a unidade, produzimos a uniformidade, a homologação. Em Aparecida, colaboramos com esse trabalho do Espírito Santo. E dá para ver no documento, se for bem lido, que há um pensamento circular, harmônico. Dá para perceber a harmonia não passiva, mas criativa, que leva à criatividade porque é do Espírito.
E o segundo ponto-chave, qual é?
BERGOGLIO: É a primeira vez que uma conferência do episcopado latino-americano se reúne num santuário mariano. E o lugar, por si só, já diz todo o significado. Todas as manhãs, rezávamos as laudes, celebrávamos a missa com os peregrinos, os fiéis. No sábado e no domingo, havia duas mil, cinco mil pessoas. Celebrar a Eucaristia com o povo é diferente de celebrá-la entre nós, bispos, separadamente. Isso nos deu um sentimento vivo de pertencer ao nosso povo, da Igreja que caminha como povo de Deus, de nós, bispos, como seus servidores. Os trabalhos da Conferência, além disso, aconteceram num espaço que fica debaixo do santuário. Dali, nós não parávamos de ouvir as orações, os cantos dos fiéis… No documento final há um ponto que fala da piedade popular. São páginas belíssimas. E eu acho, ou melhor, tenho certeza, de que foram inspiradas justamente por isso. Depois das que estão contidas na Evangelii nuntiandi, são as coisas mais belas escritas sobre a piedade popular num documento da Igreja. Aliás, eu ousaria dizer que o documento de Aparecida é a Evangelii nuntiandi da América Latina, é como a Evangelii nuntiandi.
A Evangelii nuntiandi é uma exortação apostólica sobre a missionariedade.
BERGOGLIO: Justamente. Também por isso, existe uma semelhança muito estreita. E aqui eu chego ao terceiro ponto. O documento de Aparecida não se esgota em si mesmo, não fecha, não é o último passo, pois a abertura final é para a missão. O anúncio e o testemunho dos discípulos. Para continuarmos fiéis, precisamos sair. Quando a pessoa continua fiel, sai. É isso que Aparecida diz, no fundo. E é o coração da missão.
O senhor pode explicar melhor essa imagem?
BERGOGLIO: Ficar, permanecer fiel implica uma saída. Se a pessoa permanece no Senhor, sai de si mesma. Paradoxalmente, pelo fato de permanecer, se a pessoa é fiel, ela muda. Não se permanece fiel à letra, como os tradicionalistas ou os fundamentalistas. A fidelidade é sempre uma mudança, um florescimento, um crescimento. O Senhor realiza uma mudança naquele que é fiel a Ele. É a doutrina católica. São Vicente de Lerins faz uma comparação entre o desenvolvimento biológico do homem, entre o homem que cresce, e a Tradição, que, ao transmitir de uma época para outra o depositum fidei, cresce e se consolida com o passar do tempo: “Ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate”.
É isso que o senhor diria no consistório?
BERGOGLIO: Sim. Eu falaria desses três pontos-chave.
Nada mais?
BERGOGLIO: Nada mais… Não, talvez tivesse mencionado duas coisas das quais neste momento temos necessidade, temos mais necessidade: misericórdia, misericórdia e coragem apostólica.
O que essas coisas significam para o senhor?
BERGOGLIO: Para mim, a coragem apostólica é semear. Semear a Palavra. Dá-la àquele e àquela para os quais ela é oferecida. Dar a eles a beleza do Evangelho, a surpresa do encontro com Jesus… e deixar que o Espírito Santo faça o resto. É o Senhor, diz o Evangelho, que faz germinar e frutificar a semente.
Enfim, quem realiza a missão é o Espírito Santo.
BERGOGLIO: Os teólogos antigos diziam: a alma é uma espécie de barco a vela, o Espírito Santo é o vento que sopra a vela, para fazê-la seguir em frente, os impulsos e empurrões do vento são os dons do Espírito. Sem Seu impulso, sem Sua graça, nós não vamos em frente. O Espírito Santo nos faz entrar no mistério de Deus e nos salva do perigo de uma Igreja gnóstica e de uma Igreja auto-referencial, levando-nos à missão.
Isso significa também esvaziar todas as soluções funcionalistas, os planos consolidados e sistemas pastorais do episcopado…
BERGOGLIO: Eu não disse que os sistemas pastorais são inúteis. Pelo contrário. Em si mesmo, tudo o que pode conduzir pelos caminhos de Deus é bom. Eu sempre digo a meus sacerdotes: “Façam tudo o que devem fazer; vocês sabem quais são seus deveres ministeriais; assumam suas responsabilidades e, depois, deixem a porta aberta”. Nossos sociólogos religiosos nos dizem que a influência de uma paróquia é de seiscentos metros ao redor dela. Em Buenos Aires, há cerca de dois mil metros entre uma paróquia e outra. Eu disse então aos sacerdotes: “Se puderem, aluguem uma garagem e, se encontrarem algum leigo disposto a ajudar, que ele vá para lá! Fique um pouco com aquele povo, faça um pouco de catequese e dê até a comunhão, se lhe pedirem”. Um pároco me disse: “Mas, padre, se fizermos isso as pessoas depois não irão mais à igreja”. “Mas por quê?”, eu lhe perguntei: “Elas hoje vão à missa?”. “Não”, respondeu. E então! Sair de si mesmo é sair também do recinto do jardim dos próprios convencimentos considerados inamovíveis, se eles correm o risco de se tornar um obstáculo, se fecham o horizonte que é de Deus.
Isso vale também para os leigos…
BERGOGLIO: A clericalização deles é um problema. Os padres clericalizam os leigos e os leigos nos pedem para ser clericalizados… É realmente uma cumplicidade pecadora. E pensar que o batismo, apenas, poderia ser suficiente… Penso naquelas comunidades cristãs do Japão que ficaram sem sacerdotes por mais de duzentos anos. Quando os missionários voltaram, encontraram todos batizados, todos validamente casados para a Igreja, e todos os seus falecidos tinham tido um enterro católico. A fé permaneceu intacta, graças aos dons da graça que alegraram a vida desses leigos que só haviam recebido o batismo e vivido sua missão apostólica em virtude unicamente do batismo. Não devemos ter medo de depender apenas da ternura de Deus… A senhora conhece o episódio bíblico do profeta Jonas?
Não me lembro. Conte.
BERGOGLIO: Jonas tinha tudo muito claro. Tinha idéias claras sobre Deus, idéias muito claras sobre o bem e o mal. Sobre o que Deus faz e sobre o que quer, sobre quais eram as pessoas fiéis à Aliança e quais estavam fora da Aliança. Tinha a receita para ser um bom profeta. Deus irrompe em sua vida como um rio violento. Envia-o a Nínive. Nínive é o símbolo de todos os separados, os perdidos, de todas as periferias da humanidade. De todos aqueles que estão fora, longe. Jonas viu que a tarefa que lhe era confiada era apenas dizer a todos aqueles homens que os braços de Deus ainda estavam abertos, que a paciência de Deus estava ali e esperava, para curá-los com Seu perdão e alimentá-los com Sua ternura. Deus o havia enviado apenas para isso. Ele o mandava a Nínive, mas ele, em vez disso, foge para o lado oposto, para Tarsis.
Uma fuga diante de uma missão difícil…
BERGOGLIO: Não. Aquilo de que ele fugia não era tanto Nínive, mas o amor sem medidas de Deus por aqueles homens. Era isso que não cabia em seus planos. Deus tinha vindo uma vez… e “no resto penso eu”: era o que Jonas dizia a si mesmo. Queria fazer as coisas à sua maneira, queria guiar tudo sozinho. Sua teimosia o fechava em suas avaliações estruturadas, em seus métodos preestabelecidos, em suas opiniões corretas. Tinha cercado sua alma com o arame farpado daquelas certezas que, em vez de dar liberdade com Deus e abrir horizontes de maior serviço aos outros, tinham acabado por endurecer seu coração. Como a consciência isolada endurece o coração! Jonas não sabia mais como Deus conduzia seu povo com coração de Pai.
Muitos de nós podem se identificar com Jonas.
BERGOGLIO: Nossas certezas podem se transformar num muro, numa cela que aprisiona o Espírito Santo. Quem isola sua consciência do caminho do povo de Deus não conhece a alegria do Espírito Santo que sustenta a esperança. É o risco que corre a consciência isolada, a consciência daqueles que, do mundo fechado de sua Tarsis, se lamentam de tudo ou, sentindo sua identidade ameaçada, se lançam numa luta para, no final, ficarem ainda mais auto-ocupados e auto-referenciais.
O que se deveria fazer?
BERGOGLIO: Olhar para o nosso povo não como deveria ser, mas como é, e ver o que é necessário. Sem previsões e receitas, mas com abertura generosa. Foi às feridas e às fragilidades que Deus falou. Permitir ao Senhor que fale… Num mundo que não conseguimos interessar com as palavras que dizemos, só a presença d’Ele, que nos ama e nos salva, pode interessar. O fervor apostólico se renova porque é testemunha d’Aquele que nos amou em primeiro lugar.
Nesse sentido, qual é a pior coisa, a seu ver, que pode acontecer na Igreja?
BERGOGLIO: É aquilo que De Lubac chama “mundanidade espiritual”. É o maior perigo para a Igreja, para nós, que estamos na Igreja. “É pior”, diz De Lubac, “mais desastrosa que a lepra infame que desfigurou a Esposa amada no tempo dos papas libertinos”. A mundanidade espiritual é pormos a nós mesmos no centro. É o que Jesus vê acontecer entre os fariseus: “… Vós que vos gloriais. Que gloriais a vós mesmos, uns aos outros”.
Fonte: 30 Dias – Revista Mensal, extraída do número 11 – 2007